Ele não é louco

Desalmado. É nessa pequena síntese que tenho percebido meu tempo. Esse que é feito de horas modernas, não vem da natureza, de deuses bondosos ou impiedosos. O relógio que temos no celular é invenção humana para medir em quantos minutos uma mercadoria é feita por mãos e cérebros nas fábricas. Nesse relógio o lucro sempre foi imperativo.
Lucro não rima, mas combina com desalmado desde nascença. E ainda pior: a lógica do lucro forma pessoas. A alma, o espírito, a subjetividade humana, ao contrário do que parece ou do que se explica na maioria das vezes, não é inata, não vem de presente já pronta, não é um sopro divino, seu desenvolvimento custa muita educação e comprometimento com a causa humana.
É certo que cada tempo tem suas ideias, seus valores, que compõem as subjetividades. Ideias que não brotam simplesmente na mente, mas são construídas para viabilizar a vida material, para manter ou transformar o estado das coisas, coisas mesmo, materialidade. É certo também que cada pessoa não é cópia ou miniatura do seu tempo, mas o entrecruzamento da história individual com a coletiva.
Nosso tempo, como não poderia ser diferente, tem seu conjunto de ideias para sustentar nas subjetividades a materialidade, ou mesmo a própria sociedade, que lhe pariu. Essa fértil terra que pisamos desde a ascensão da burguesia pariu vastas ideias, desde o iluminismo, passando por certo grau de humanismo, coroando o liberalismo nas versões neo e gourmet, até a eugenia. Dela veio ao mundo, arriscaria dizer, as bestas mais bem acabadas do capitalismo, aperfeiçoadas em laboratórios, o fascismo e o nazismo.
Todas essas vastas ideias povoam nossas almas porque estão no nosso chão de todo dia. É compulsório. Só tem uma condição inegociável para a manutenção do nosso tempo: o lucro acima de qualquer vida, inclusive a própria, da criança, da esposa ou da mãe. Mas, contraditoriamente, também criamos o seu oposto, tanto nas ideias, como no ensaio e embates reais por novos tempos. Não parece, mas o pra sempre não existe.
Da liberdade da poesia que tiro o desalmado, porque não é que não tenham almas as pessoas do nosso lado que não se importam com a morte, com muitas mortes. Não é que o próprio Satanás cobrou a alma de quem prefere vender hambúrgueres a preservar cinquenta mil vidas. Nem que já nasceu desprovida de alma aquela dona de escola que a deixa em pleno funcionamento, a mercê do vírus, adoecendo professores e crianças, espalhando sofrimento. Ou que fugiu pelas orelhas as almas daqueles que vão pra rua defender o direito de ser explorado pelo patrão. Todas essas almas tem a marca do ferro quente do lucro. Desalmadas porque estreitas, mesquinhas, cindidas, rasas, cruéis, como só nosso tempo, com anos de educação neoliberal e precarização do trabalho, pode construir.
Bolsonaro é um desalmado-mor ambulante. É um genocida. É um grande assassino. É uma caricatura bestial dos tempos que vivemos. Só não parece que é de loucura que é feita sua alma, mas de restos do próprio capitalismo.

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