Coluna: Luiz Bosco — Transexualidade não é doença: afinal, o que define quem somos?

O que define o ser humano não é sua biologia. Essa categoria científica, inventada por nós mesmos, serve para compreendermos nossa fisiologia, nossas necessidades mais evidentes, nossos aspectos animais. O que nos humaniza são as práticas sociais em que mergulhamos a partir do momento em que nascemos, transmitidas pela família, pela comunidade, pela escola, pela religião etc. Elas moldam nosso corpo, dizendo como é aceitável se sentar, como andar, como mover-se ao comer, qual tom de voz usar etc.; forjam nossa consciência através de todo o mar de signos, palavras e discursos que nos circunda.

A aventura de se fazer gente é construída na sociedade, que nos diz em que acreditar, como nos relacionarmos, como devemos desejar.

Cada indivíduo traz as marcas dadas pelas coletividades, mas se torna único, pois as recebe de formas singulares, muitas vezes irrepetíveis, e pode combiná-las dentro de uma infinidade de possibilidades.

Espera-se que a uma dada configuração do sexo, haja um conjunto de comportamentos e uma visão de mundo conjugada a ela. Ao conjunto dessas imposições intitulamos heteronormatividade: a visão de mundo (predominante) de que a única sexualidade aceitável é a heterossexual.

A sexualidade humana é muito diversa e não se restringe a aquilo que supostamente nossa condição biológica imponha a nós. Algumas pessoas vão trilhar essas vias de maneira que não se sentem adequadas ao corpo biológico em que nasceram, nem se sentem bem com as obrigações impostas pela sociedade, vinculadas a esse corpo.  Elas se olham no espelho e não reconhecem aquele corpo como seu; não desejam como esperam que ela deseje; não sentem emoções como querem que ela sinta. São pessoas que não se identificam com o sexo atribuído a elas e que buscam meios diversos para corrigir isso. De forma geral, são denominadas transexuais. Não são restritas a identidade homem/mulher, podendo assumir uma diversidade de possibilidades bastante ampla e complexa.

Em junho de 2018, a Organização Mundial de Saúde retirou a transexualidade do rol de doenças psiquiátricas, corrigindo uma injustiça histórica. Isso já havia sido feito com relação à homossexualidade em 1990 e alcança uma população extremamente estigmatizada e suscetível a violências.

Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, em 2017 foram assassinadas(os) 179 travestis e transexuais, sendo 94% delas mulheres. A combinação dessas estatísticas com a constatação de que geralmente se tratam de assassinatos violentos, caracterizados por atos bárbaros como estuprar, linchar e esquartejar, demonstram que não são dados que possam ser correlacionados a outros fatores (como mortes por envolvimento em crimes, por exemplo).

São homicídios motivados pelo ódio a essas pessoas que não correspondem às imposições sociais sobre nossa sexualidade. Nós nos sentimos incomodados diante de pessoas que não se enquadram nas expectativas estreitas da política que rege nosso desejo. Somos forçados a viver dentro do normal e quem não adere à norma deve ser excluído ou eliminado.

Já não cabe mais em nossa sociedade a exclusão e a barbárie que a acompanha. As diferenças devem ser respeitadas para que haja igualdade. É preciso avançar, garantindo às pessoas transexuais o direito de estudar sem sofrerem violências cotidianas na escola; de terem acesso ao trabalho, sem ficarem restritas ao subemprego ou a prostituição; de poderem amar e constituir família, sem se sentirem ameaçadas. É preciso garantir a elas o direito de viver como qualquer outra pessoa.

Agradecemos a Diego Babinski, da ONG Nubia Rafaela Nogueira, por revisar o conteúdo e os conceitos empregados no texto.

Luiz Bosco Sardinha Machado Jr. 
Psicólogo (CRP 06/96910)
Mestre e Doutor em Psicologia pela Unesp
Especialista em Psicologia Escolar e Educacional pelo CFP

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