Entrevista: “A cultura sempre representou uma resistência”, diz Neusa Fleury

Por representarem um enorme retrocesso, as medidas anunciadas pelo governo Temer tem provocado indignação e uma enxurrada de manifestações. No meio cultural não foi diferente. A atitude do governo de vincular o Ministério da Cultura, agora com o status de secretaria, ao da Educação, tem gerado muita polêmica. O Ministério da Cultura foi criado em março de 1985, inserido no processo de redemocratização do país. A pasta, que chegou a ter como ministros o economista Celso Furtado e o músico Gilberto Gil, foi responsável por incluir temas importantes na agenda do país. A valorização da diversidade cultural, com o reconhecimento de segmentos até então excluídos, conferiu ao órgão um maior protagonismo na democratização do acesso à cultura.

Para promover uma reflexão sobre este e outros assuntos relacionados às políticas públicas da cultura, o Jornal Contratempo conversou com a professora e ex-secretária municipal de Cultura, Neusa Fleury. Secretária de Cultura de Ourinhos em várias gestões, Neusa foi responsável pela criação dos principais projetos culturais desenvolvidos na cidade, como os festivais de música, teatro e literatura, e a fundação das Escolas Municipais de Bailado e Música. Durante a sua gestão, foi lançado também o Edital de Fomento à Cultura, ação inovadora na região, que propiciou o apoio direto aos produtores e artistas que tiveram a oportunidade de desenvolver seus projetos na cidade. É coautora dos livros Um olhar sobre a presença japonesa em Ourinhos e Divina Comunhão – 10 anos do Festival de Música de Ourinhos. Atualmente ministra oficinas de gestão cultural e elaboração de projetos a convite de outras instituições.

JC: Qual o papel da cultura na formação do cidadão?

 

Neusa: Com a extinção do Ministério da Cultura, essa questão tem sido discutida. Parece que sempre existirá quem não valorize a cultura, dizendo que as artes não têm utilidade prática, já que não se consegue facilmente medir seus benefícios. Mas nem tudo que se relaciona ao humano precisa ter essa finalidade prática e pode ser mensurado. Conseguir entender que a vida pode ser mais do que o trabalho e acomodação às normais sociais é importante e libertador, e as artes ajudam nesse processo. Penso que o acesso à cultura desenvolve a sensibilidade. Ter acesso a manifestações culturais como o teatro ou a literatura ajuda a pessoa a se conhecer melhor e dessa forma conseguir se colocar no lugar do outro, esses comportamentos que estão fazendo falta nestes dias conturbados onde reina a intolerância.

 

JC: Ourinhos tem tido sucesso na formação de quadros culturais. Jovens se formam e se profissionalizam utilizando as escolas públicas de Música e Bailado. Muitos saem dessas escolas e são aprovados no Conservatório de Tatuí ou universidades de ponta. No entanto, a arte ainda não chegou à periferia da cidade. Como fazer para que a arte faça parte do dia a dia do cidadão? Como as políticas culturais podem envolver a periferia da cidade?

 

Neusa: Não é só a cultura que não chega à periferia. Serviços públicos como a saúde, a assistência social, esporte e educação também não chegam ou são insuficientes. Existe uma clara separação econômica/social que se verifica quando se vê a cidade ao longe. Afastados dos centros, em grandes bairros com casas populares construídas de forma semelhante, moram as pessoas mais pobres. Mesmo vivendo em ambientes de maior vulnerabilidade, essa população costuma não manifestar seu descontentamento, é acuada e submissa, tem um sentimento de não pertencimento. No máximo reclamam de buracos nas ruas, mas quase nunca se queixam da falta de equipamentos culturais, pois nunca tiveram acesso e não sabem dos benefícios. Os recursos públicos são limitados, e existem “ralos” de desperdício que impedem que os investimentos cheguem até os bairros mais distantes. É um desafio que precisamos enfrentar numa cidade que cresce.

Neusa, um ícone da cultura ourinhense

JC: Como você imagina os próximos passos da política cultural em Ourinhos?

 

Neusa: Imagino que serão difíceis, por vários fatores. Em primeiro lugar, porque vivemos uma crise econômica e política. A área da cultura recebe um orçamento pequeno, mas costuma ser o primeiro a receber cortes, e isso pode inviabilizar algumas iniciativas. Em segundo lugar, houve um desmonte da equipe que havia sido treinada durante anos para o trabalho cultural, e faltou incentivo à produção cultural local. O resultado pode ser sentido na falta de entusiasmo dos artistas e produtores culturais e afastamento do público. Além disso, nosso principal espaço para apresentações artísticas, o Teatro Municipal, precisa de reformas e não é pouco dinheiro que vai resolver. Enfim, será um desafio e tanto.

 

JC: O que você achou do fechamento do Ministério da Cultura? Subordinado à educação, terá a mesma autonomia e força?

 

Neusa: Acho que foi um erro, com consequências muito graves para o setor. O orçamento do Ministério representava 0,8%, e esse total nunca foi utilizado. Ou seja, com certeza existem desperdícios que poderiam ter sido cortados, mas que foram preservados. As pessoas falam em obscurantismo e eu concordo. Não existe um entendimento claro da importância das artes na formação das pessoas, e aí fica fácil fechar o Ministério, e até receber apoio por isso. A cultura sempre representou uma resistência, e incomoda. Mesmo que a área continue existindo subordinada à educação, é evidente que foi desvalorizada com essa iniciativa. Perdeu a importância, vai desmobilizar os artistas em torno da causa. O país sai perdendo e muito, por não conseguir defender um setor público que valoriza a identidade dos brasileiros, talvez nosso maior tesouro.

 

JC: Você acha que a atitude do governo federal pode ter um efeito cascata, levando os municípios a considerarem dispensáveis as secretarias de cultura?

 

Neusa: Acredito que isso pode acontecer. Por falta de iniciativas e reflexão a respeito da comunidade em que vivem, os municípios costumam seguir as políticas públicas sugeridas ou impostas pelo governo federal. Pouco se acrescenta àquilo que já vem pronto, são raras as iniciativas criadas espontaneamente pelos municípios, a partir da análise da comunidade. Assim, é provável que, já que o governo federal hoje está entendendo que a cultura não é importante, os municípios também copiem e acabem com as secretarias de cultura.

 

JC: Como você vê a política municipal, considerando o desempenhado dos vereadores, da prefeita Belkis e seus secretários?

 

Neusa: Acho que a Câmara teve uma atuação diferente neste mandato. Houve oposição, coisa que não estava acontecendo nos últimos anos. Isto é muito positivo, porque a crítica provoca a reflexão, é preciso que exista. Alguns vereadores apuraram denúncias, não jogaram o lixo debaixo do tapete, e é para isso que foram eleitos. Um problema é a falta de representatividade de algumas categorias na Câmara. De maneira geral os vereadores têm dificuldade em analisar demandas ou propor projetos nas áreas da educação ou cultura, porque a cidade não elegeu nenhuma pessoa com esse perfil. Durante as campanhas eleitorais, a área da saúde é a bandeira mais defendida, já que afeta um grande número de eleitores que usam a rede pública. Precisamos qualificar melhor nossos representantes, e seria muito bom se as pessoas não se mostrassem tão arredias e participassem mais da política. Sobre a atual gestão, sinto que a cidade não avançou, parece que perdeu o foco, está feia, e nossa autoestima em baixa, com um sentimento de perda. Não existiu uma comunicação eficiente entre o governo e a população, que acabou se sentindo enganada. Enfim, estagnamos. Para retomar o desenvolvimento e resgatar um sentimento positivo e de esperança, teremos que nos unir. Hoje as pessoas têm muita informação e cobram seus direitos. A administração pública precisa ser clara nas explicações sobre como aplica os recursos e realiza seus programas. Não vejo outra alternativa.

 

JC: Quais são os desafios da cidade nos próximos anos? Quais são os gargalos que a cidade precisa superar para melhor se desenvolver?

Neusa: Olha, seria bom se os problemas mais simples fossem resolvidos, sem muita pirotecnia. Estamos preferindo um arroz com feijão bem feitinho do que um filé imaginário. Então, além dos cuidados básicos de limpeza, iluminação pública e asfalto, precisamos nos preocupar com o meio ambiente, com a forma como tratamos o lixo e preservamos as nascentes e córregos, e de que maneira estamos incentivando iniciativas de educação ambiental. Precisamos de áreas verdes para lazer, e conseguir que os benefícios socioculturais cheguem aos bairros mais afastados. Além disso, ainda será preciso estimular a criação de empregos. Não é pouca coisa não.

 

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