Determinação de “estupro culposo” revolta brasileiros e fere a luta das mulheres
Audiência e inferência do caso Mariana Ferrer é considerada um marco negativo na história para as mulheres
Juliana Neves
Crime de estupro e de estupro vulnerável são tipos penais diferentes do Título VI do Código Penal, que trata sobre Crimes Contra a Dignidade Sexual. Mas nem sempre a realidade foi desta maneira. Até 2009, eram crimes vistos com a intenção do legislador de tutelar o poder de propriedade do homem sobre seu objeto, ou seja, a mulher. Afinal, o direito e a sociedade andam juntos e em uma sociedade machista as regras e leis não poderiam ser diferentes.
Em 2009, foi quando começou a falar sobre Crimes Contra a Dignidade Sexual, isto é, não é mais uma valorização do que a sociedade considera correta, mas, sim, a dignidade pessoal do sujeito, incluindo, sobretudo, as mulheres.
Salvo, especificamente, do artigo 217-A do Código Penal, o tipo penal estupro de vulnerável estabelece que “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos” incorre em pena de reclusão 8 a 15 anos. No § 1º do mesmo artigo “incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra coisa, não pode oferecer resistência”.
Significa que independente da vontade da vítima, aliados aos elementos de autoria e materialidade, o Ministério Público deverá oferecer a denúncia contra o acusado do crime. Uma movimentação importante, pois ao chegar ao conhecimento do Estado o réu responderá pelo crime.
“Após o inquérito, e iniciado o processo, as partes (MP, defesa, auxiliar de acusação) deverão instruir os autos com elementos de provas. Só pode ser considerado prova aquilo que passou pelo crivo do contraditório e da ampla defesa. Em outras palavras, mesmo o pior dos facínoras deverá ter direito a uma defesa justa. Do contrário o processo será considerado nulo. E aquela ânsia por justiça – vingança se sublimará em impunidade. Aliás, em mais impunidade. Essas são as regras do Estado de Direito. E respeitá-las é fundamental. Do contrário restará apenas a barbárie”, explica Edson Nilo, advogado.
Certamente o Magistrado é quem juga o caso, com base nos autos e de forma objetiva, para livrar-se de subjetividade e opiniões próprias.
Caso Mariana Ferrer
Em dezembro de 2018, Mariana Ferrer, 21, estava trabalhando como promotora de uma festa em um beach club de Jurerê Internacional, em Florianópolis. Neste dia, a jovem suspeita ter sido drogada e, por isso, não sabe dizer exatamente o que aconteceu, porém em suas roupas continham seu sangue, ela era virgem, e sêmen de André de Camargo Aranha, empresário. E o exame toxicológico de Mariana não constatou a presença de álcool ou drogas em seu organismo.
Com isso, foi concluída a prática de estupro vulnerável, pois a jovem não possuía condições para oferecer alguma resistência ao ato. Imediatamente, o empresário foi denunciado à justiça pelo Ministério Público.
Na terça-feira, 03, foi divulgado pelo Intercept Brasil o vídeo da audiência do julgamento deste estupro, tendo como conclusão o empresário sendo inocentado. O Ministério Público considera o ato como “estupro culposo”, ou seja, Aranha não teria tido a intenção de estuprar. Tese que não há precedência na justiça brasileira e contradiz o próprio Ministério que denunciou o empresário por estupro vulnerável.
É válido ressaltar que André tem como seu advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, um dos mais caros de Santa Catarina.
E o vídeo da audiência divulgado na mídia, mostra claramente o advogado humilhando Mariana em relação ao seu trabalho, seu estilo de vida, suas fotografias de um ensaio sem relação com o caso, apelidado pelo advogado por ser constituído de “posições ginecológicas”, e o estilo de vida divulgada nos perfis pessoais da jovem de mídia social.
É possível inferir que a advogado tenta utilizar de artefatos para entender que a garota seria vulgar e em razão das atitudes cotidianas dela poderia ser considerada consequência o que aconteceu naquela festa, um completo cenário e momento de terror para a promotora.
Imagens print do vídeo divulgado pelo Intercept Brasil (Foto: vídeo Intercept Brasil)
Diante da situação, a garota chora e exclama “excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, após ouvir a frase humilhante “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo” de Cláudio.
Por fim, o juiz Rudson Marcos concluiu que não houve provas suficientes para a condenação do réu, o empresário Aranha, garantindo a absolvição do acusado. O estupro sem dolo causou espanto pelo público, bem como a atitude agressiva do advogado.
A justiça concedeu para Mariana apenas o tratamento psicológico para ela, para a mãe e sua irmã pagos pela boate onde ocorreu a festa e, consequentemente, o crime.
Ordem dos Advogados (OAB) de Santa Catarina e o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos solicitaram esclarecimentos para o advogado e ao Tribunal de Justiça (TJ) do estado sobre a conduta do mesmo durante a audiência.
A defesa da promotora afirmou repudiar a sentença do Poder Judiciário catarinense e diz que somente a vítima é a pessoa que pode afirmar ou não se houve consentimento do ato sexual, e não promotor e nem juiz.
E a Corregedoria Nacional de Justiça abriu investigação em relação à conduta do juiz Rudson Marcos durante a audiência, que não proferiu nenhuma palavra durante a cena de humilhação.
É um caso que demonstrou inconformidade e aumentou o desejo de justiça por todos os brasileiros, principalmente, pelas mulheres que sentem feridas e machucadas. Considerando um dia histórico negativamente para a luta das mulheres.
Caso Mariana Ferrer e a Advocacia
O advogado Edson Nilo explica que não pode se manifestar em relação ao caso que está em segredo da justiça, que o processo não foi encerrado porque não transitou em julgado, os advogados da vítima entraram com recurso e não existe estupro culposo no jurídico brasileiro. É um exemplo hipotético “que de tão esdruxulo e absurdo, eu não teria coragem sequer de tentar explicá-lo”, fala o advogado.
Portanto, há uma confusão semântica na compreensão dos conceitos jurídicos e terminologias técnicas. “Ocorre que só há Dolo quando há conhecimento e vontade. Na ausência desses elementos, o autor do fato incorre em erro de tipo. Ou seja, ele erra sobre algum dos elementos daquilo que constituem o crime. Exemplo. E em abstrato! No caso do estupro de vulnerável, o acuso precisa estar plenamente ciente da vulnerabilidade da vítima. E se está, e ainda assim pratica o ato, incorreu em crime, porque praticou todos os elementos do tipo penal. Essa vulnerabilidade decorre de idade, drogadição, alcoolemia etc. E não havendo tal elemento constitutivo do Dolo, a saber, conhecimento, não há que se falar em crime. E como não há estupro culposo, trata-se de fato atípico. Em abstrato”, explica Nilo.
Ou seja, em específico ao caso Mariana Ferrer, o advogado não pode opinar, de modo concreto, por não ter lido os autos e estar em segredo da justiça. Mas a sua única certeza é que cabe ao juiz julgar os fatos.
Em relação ao vídeo, das cenas de falas do advogado para a promotora, caso tenha ocorrido abuso de Cláudio Gastão e omissão de Rudson Marcos, “OAB, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) precisam investigar e apurar os fatos”, frisa Edson.
O que deve estar claro que é ambas as partes, vítima e acusado, estão envolvidos sobre o ponto de vista psicológico no processo. E que um advogado de defesa do réu não pode se exceder e humilhar uma vítima, mesmo que o profissional possui o direito de defender o seu cliente, porém deve ser baseado nos limites da lei. E se o Magistrado não se manifesta neste cenário, é sinal de existência de algo errado.
Ainda segundo a vivência profissional do advogado Edson, “sobre a possibilidade de um réu ser inocentado: objetivamente, essa possibilidade existe. E é uma das regras do Estado de Direito: in dubio pro reo. Restando dúvidas, é lícito que o Magistrado o absolva. Não só, caso não se prove autoria e materialidade não há que se falar em condenação. Agora, no caso em tela, que foi levado à estratosfera do mundo informacional, nos confins últimos da rede, seria preciso analisar os autos. […] o depoimento da vítima tem um peso “maior” do que as demais provas. Isso porque, em regra, tal crime ocorre “em quatro paredes”. A versão da vítima do fato, muitas vezes, é o único elemento relevante de prova. Obviamente, o Magistrado não pode condenar, única e exclusivamente, com base apenas na versão da vítima. Porém, em se concretizando tal precedente, isso pode abrir uma porta perigosa no combate aos crimes contra a dignidade sexual”, conclui.
Primordialmente, para que haja solução de algum problema é preciso ser tratado juridicamente, politicamente e psicologicamente. Colocando em xeque o patriarcado, abrir espaço para discussões sobre feminismo, ser mulher e ser homem em uma sociedade capitalista.
Lutas das mulheres
A luta das mulheres é muito mais ampla do que somente se atentar á uma trincheira do embate jurídico, pois avançamos muito na visão de Edson. Como as alterações legais em 2005 e 2009 com criação de delegacias especializadas no atendimento à mulher, a Lei Maria da Penha, o programa Bolsa Família que concede renda à mulher, mesmo de forma indireta, diminui casos de violência doméstica outros crimes, pois a renda proporciona emancipação.
“A verdadeira trincheira está no embate político. Conscientização, politização, trabalhos de base nas periferias. Porque promovendo esse trabalho de formiguinha, as mulheres deixam de ser apenas mulheres e passam a ser uma massa coletiva e política com chances reais de mudar e abalar as velhas estruturas patriarcais, não só do nosso Estado, mas de toda sociedade. […] Acredito que seja um processo dialética, em que a consciência se faz na luta e vice-versa. É mais do que falar em empoderamento: é consciência de classe. Classe, gênero e raça são questões imbricadas que não podem ser analisadas em separado”, indica Edson.
Estupro e a Psicologia
Na visão psicológica, estupro é um crime quando uma pessoa força a outra a ter contato sexual com o uso de violência ou ameaça. Com caracterização, segundo o Código Penal, como:
– Estupro simples: qualquer tipo de contato sexual sob ameaça ou violência em que há penetração.
– Estupro de vulnerável: quando é praticado com menores de 14 anos, ou com pessoas sem discernimento, que não conseguem resistir ao ato sexual por qualquer motivo.
– Estupro coletivo: quando envolve dois ou mais agressores no crime.
– Estupro corretivo: quando ocorre o ato sexual para “corrigir” a orientação sexual ou para controlar o comportamento social da vítima.
Proporcionando consequências tanto físicas quanto psicológicas: lesões físicas, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, ansiedade, depressão e suicídio para a vítima.
O psicológico da vítima fica totalmente afetado podendo causar ansiedade, depressão, suicídio, distúrbios do sono, transtorno de estresse pós-traumático, perda da autoestima etc. O tratamento com a vítima em casos de estupro deve ser num primeiro momento de acolher seus sentimentos, dar apoio emocional, avaliar sua organização psíquica, dar umas algumas diretrizes práticas e tornar claro para a vítima sua rede de apoio. Com isso, o tratamento deve seguir no sentido de ajudar a vítima a se reorganizar com sua vida pessoal nos mais amplos contextos, sempre fortalecendo e reforçando sua rede de apoio”, poderá Mayara Labs, psicóloga e especialista em terapia familiar.
E com um olhar específico para o caso de Marina Ferrer, a psicologia entende ser uma sentença que desconsidera toda conquista de respeito e de direitos dos seres humanos. Um movimento de retrocesso e desencorajador para outras vítimas de estupro para buscarem seus direitos e colocar em prática a denúncia.
Segundo a psicóloga, “o que a sociedade pode fazer para ajudar na diminuição dos casos de estupro é isso que ela vem fazendo, tornando público as injustiças. Mas é possível ir além desse meio virtual dialogando com familiares e amigos sobre o estupro, tomando posição diante da menor fala/atitude abusadora, oferecendo apoio e escuta ao outro, trabalhando orientação sexual e ensinando o respeito no seu dia a dia, dialogando sobre as partes íntimas do corpo e seus limites, julgando e criticando menos e dando mais informações e esclarecimentos sobre o abuso”, finaliza.
Fonte de informações sobre o caso: G1 e Intercept Brasil