Por que Stanley Kubrick é um gênio do cinema? – Por Bruno Yashinishi
Contrariando autores que enxergam o cinema como mero artefato de reprodução técnica de fotografias ou, ainda, como um produto de segunda categoria da indústria cultural capitalista e alienante, é possível compreendê-lo como legítima expressão artística e cultural, fruto do nosso tempo e como a “sétima arte” (adjetivo dado em 1923 por Ricciotto Canudo). De fato, ainda que os irmãos franceses Lumiére tenham rotulado o cinema como “invenção sem futuro” em seus primórdios, o que podemos observar 130 anos depois é que, seus controversos “inventores” estavam muito enganados.
Nas outras artes, é comum que indivíduos notáveis sejam rotulados como “gênios”. Por exemplo, Bach, Beethoven, Chopin ou Mozart na Música; Shakespeare, Molière, Brecht ou Nelson Rodrigues no Teatro; Cervantes, Dostoiévski, Machado de Assis ou José Saramago na Literatura; entre outros. Como legítima expressão de arte, a história do cinema também é repleta de grandes personagens, atrizes e atores, roteiristas, produtores e, claro, diretores de filmes. O cinema também tem seus gênios.
No senso comum, um “gênio” é alguém que tem talentos natos, com caráter excepcional, que possui habilidades naturais que o distingue dos demais. Entretanto, o sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) não limita esse adjetivo à individualidade, mas a aspectos sociais, sendo que a educação e o meio ocupam papeis essenciais. Ao escrever uma biografia sob um prisma sociológico de Mozart, “Mozart, sociologia de um gênio” (1991), Elias considera a genialidade do músico vienense, não desconsiderando seus dotes pessoais, mas compreendendo as interdependências entre o sujeito e a sociedade, as figurações sociais e o contexto histórico para a formação e papel social dos indivíduos.
Nesse sentido, o diretor estadunidense Stanley Kubrick pode ser considerado um gênio da “sétima arte”. Kubrick nasceu em Nova York em 1928 e faleceu no Reino Unido em 1999. Na escola foi um aluno mediano, com dificuldades em algumas matérias e no processo de socialização com outros colegas. Entretanto, desde cedo tinha gosto pela leitura e aprendeu xadrez desenvolvendo grande habilidade no jogo. Ainda muito jovem ganhou de presente do pai uma máquina fotográfica, o que despertou sua paixão e talento para a fotografia. Com 16 anos de idade, fotografou por acaso um jornaleiro debruçado tristemente sobre a capa de um jornal que trazia na manchete a morte do presidente Roosevelt. Essa foto rendeu-lhe seu primeiro emprego na revista “Look”.
Além do xadrez, da leitura e da fotografia, Kubrick apaixonou-se pelo cinema, assistindo a todo tipo de filme e aprofundando seus conhecimentos sobre essa arte. Essa nova paixão fez com que ele se aventurasse nos caminhos da cinematografia na década de 1950 até os últimos dias de sua vida. Comparada a outros diretores da mesma estirpe, sua carreira é longeva, mas com um número relativamente pequeno de produções.
De 1951 a 1999, Kubrick dirigiu três documentários de curtas-metragens: “Dia de luta” (1951), “O padre voador” (1951) e “Os marítimos” (1953); e 13 longas-metragens: “Medo e desejo” (1953), “A morte passou por perto” (1955), “O grande golpe” (1956), “Glória feita de sangue” (1957), “Spartacus” (1960), “Lolita” (1962), “Dr. Fantástico” (1964), “2001: uma odisseia no espaço” (1968), “Laranja mecânica” (1971), “Barry Lyndon” (1978), “O iluminado” (1980), “Nascido para matar” (1987) e “De olhos bem fechados” (1999). Além de ter deixado dois projetos de sua autoria inacabados ou nem mesmo desengavetados: o filme nunca realizado “Napoleão: papeis arianos” e “Inteligência Artificial”, projeto que ele fez questão de passar a Steven Spielberg, que o lançou em 2001.
Mesmo com esse número de trabalhos, Stanley conseguiu realizar filmes de inegável qualidade técnica e estética, bem como grandes clássicos que frequentemente compõem as listas dos melhores filmes da história, como Dr. Fantástico, 2001 ou Laranja Mecânica. Ao longo da carreira, como todo gênio legítimo, o diretor foi por vezes ovacionado e em outros momentos incompreendido. Foi indicado algumas vezes ao Oscar nas categorias Melhor Filme e Melhor Diretor, mas nunca ganhou a estatueta, apenas em 1969 com 2001 na categoria Melhores Efeitos Visuais. Por sua vez, Kubrick nunca ligou para essa premiação. Entretanto, no ano de 1997, a Directors Guild of America concedeu a Stanley seu mais prestigioso prêmio, o D.W. Griffith Award for Lifetime Achiviement. No mesmo ano recebeu um Leão de Ouro no 54º Festival de Veneza.
Enfim, a genialidade de Stanley Kubrick é pungente em suas obras e nítida na forma com que seus filmes abordam as mais complexas temáticas da natureza humana. Basta perceber o tato para as críticas antibelicistas presentes em “Glória feita de sangue”, “Dr. Fantástico” e “Nascido para matar”. A questão dos dramas da intimidade e perversões sexuais em “Lolita” e “De olhos bem fechados”. A violência, loucura e corrosivas críticas políticas em “Laranja mecânica” e “O iluminado”. A escatologia, erudição narrativa, filosofia e simbologia da evolução humana em “2001: uma odisseia no espaço”.
Como sugestões de aprofundamento sobre a vida e obra de Kubrick, o documentário “Kubrick: imagens de uma vida” (2001), de Jan Harlan, com participações especiais de Woody Allen, Martin Scorsese, Sidney Pollack, Steven Spielberg, Jack Nicholson, Nicole Kidman, entre outros, é uma linda homenagem e inestimável fonte de informações. Também existem livros muito bons de autores brasileiros ou traduzidos para o português, como “Stanley Kubrick: a filmografia completa”, de Paul Duncan (Taschen, 2011); “Kubrick: de olhos bem abertos”, de Frederic Raphael (Geração Editorial, 1999); “Conversas com Kubrick”, de Michel Ciment (Cosac Naify, 2013); “O gênio atrás da lente”, de Juan Droguett (B4, 2014) e “Stanley Kubrick: o monstro de coração mole”, de Marcius Cortez (Perspectiva, 2017).
Kubrick, o gênio do cinema do século XX merece toda reverência e prestígio. Àqueles que ainda não conhecem suas obras, assistir a um filme de Stanley Kubrick é uma experiência insólita, profunda e fascinante. Uma aula sobre cinema de verdade. Aos que conhecem, rever um de seus filmes sempre é ver o mesmo filme pela primeira vez.