por Renato Rabelo*
No saldo desses últimos dez meses chegamos a uma situação de grande turbulência e desordem política no Brasil. O consórcio oposicionista, com gradação diferenciada, tenta imputar a responsabilidade de todos os males à presidenta da República, Dilma Rousseff. O governo, por sua vez, está enfrentando uma dura realidade objetiva no plano internacional, em que a grande crise econômica sistêmica do capitalismo atinge o país em cheio. Ao mesmo tempo, internamente, o país vive o fim de um ciclo, que exige uma transição para nova etapa de desenvolvimento nacional. Nesta complexa encruzilhada, o governo – empenhado na busca de nova construção econômica e política – pode cometer erros ou equívocos.
De forma mais precisa, o governo Dilma responde a outro contexto mais complexo ainda e desafiador, que está além dos dez primeiros anos a partir de 2003. Na verdade, tem prevalecido da parte da presidenta da República dedicação e inteira responsabilidade na busca da superação da crise política e econômica. Honesta e sincera, ela tem dado provas da sua obstinação para conhecer a realidade concreta, a fim de abrir caminho para uma nova etapa de desenvolvimento para o país, estando comprometida com a orientação de mais democracia, mais soberania e mais progresso social.
Nesse período, a maioria da elite conservadora demonstrou seu inconformismo com o resultado da eleição presidencial de 2014. Sublinho: tem sido da inteira responsabilidade da oposição, a instrumentalização da crise, a exacerbação da situação econômica, incitando a desconfiança, explorando o descontentamento de certas camadas da população e levando-as à exasperação, principalmente ao ataque à presidenta da República, ao PT e, crescentemente, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Isso ocorre, sobretudo, a partir de seus setores mais recalcitrantes da Câmara dos Deputados e do Senado e do ostensivo papel oposicionista da maioria da “grande” mídia, do próprio presidente do PSDB, de movimentos fascitóides, baseados em camadas médias abastadas.
A oposição anti-Dilma procurou infundir uma grande quimera no seio da população – através da mídia dominante – que destituindo a presidenta Dilma, surgiria um governo com legitimidade e tudo se resolveria. Assim, nesse tempo se dedicaram de todas as formas à conspiração golpista, em criar maneiras de burlar a Constituição, em desnaturar as conquistas democráticas. Movidos pela intolerância política e cegos pela ânsia e pelo açodamento em destituir a presidenta da República, uma liderança desse campo – Paulinho da Força – confessou: “Achamos que era muito fácil tirar Dilma do poder”. O aventureirismo, a farsa embutida na sua maior consigna – o moralismo, mas em verdade, sem moral – e uma ação política que demonstra seus verdadeiros intentos aplicados na prática do “quanto pior, melhor”.
Em síntese, a oposição efetivamente não tem apresentado nenhuma alternativa, nenhum projeto para o país. Sua alternativa se fixou em criar arbitrariamente um “terceiro-turno”, compreendendo apenas descaracterizar a democracia e desconstruir não só o governo Dilma, mas o próprio país. Fazem tudo pela sua volta ao centro do poder, seguindo à risca a ideologia clássica lacerdista do “vale tudo, sim, pelo poder”.
Na recorrência do movimento golpista, essa oposição age em pleno conciliábulo com o presidente da Câmara dos Deputados, chegando ao limite de definir um rito próprio para abertura do processo de impeachment, antidemocrático e sem consistência constitucional.Possibilidades de um novo momento político
Na terceira semana de outubro entra em cena o STF, numa ação rápida e responsável, deferindo liminares provocadas por deputados do PCdoB e do PT para impedir o rito imposto. Barrou-se assim, no campo jurídico, a manobra golpista. Numa demonstração acintosa e petulante dos golpistas, estes ainda tentaram esquivar-se da decisão do Supremo.
No próprio jogo de “novo pedido” de abertura do processo de impeachment já transpareceu a farsa. Ele é repetitivo, porquanto os fatos arrolados são os mesmos e a justificativa fundamental é a mesma do pedido original. A emenda introduzida é ainda pior que o arrazoado, uma aberração jurídica: pede condenação por um suposto delito a acontecer.
Agora, eis que o próprio Eduardo Cunha, que está no centro de pesadas acusações da Procuradoria Geral da República, num recuo indicativo, afirma que “o fato de ter a pedalada, por si só, não significa que isso seja razão para pedido de impeachment”. Tal situação expõe a que patamar atingiu a exasperada ação oposicionista: desconstrutiva para a nação e sua ordem institucional.
Assim, no momento certo, em resguardo do Estado democrático de direito, a legalidade é reposta pelo STF no convulsionado curso político. Abre-se, desse modo, o cenário para novo momento político. Esta e outras decisões substanciais, recentes, da Suprema Corte, podem ser providenciais para se alcançar a normalidade política, nesta hora em que tanto se exige para repor o caminho do crescimento econômico do país.
Compondo esse novo momento, destaca-se o volume crescente de manifestações do pensamento jurídico mais representativo e independente do país e de personalidades progressistas, questionando e condenando a leviandade como está sendo tratado o tema do impedimento da presidenta da República. Sobretudo enfatizando que, sem prova de crime de responsabilidade cometido diretamente pela presidenta no exercício de seu mandato, esse intento é um “flagelo à democracia brasileira e um escárnio à Constituição”. E ressalte-se, o pronunciamento com justa propriedade por parte do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, ao afirmar que “temos que decidir se somos uma grande nação ou uma ‘republiqueta’”.
Por sua vez, o movimento social e de esquerda se organiza na Frente Brasil Popular, enfatizando a luta contra o golpismo. E – numa ação mais expansiva – setores representativos da própria elite conservadora se opõem ao impeachment.
Esse novo momento se completa pela atuação presente e crescente da presidenta Dilma, com os seus pronunciamentos mais afirmativos. Sobretudo, pela primeira vez focados em desnudar a trama golpista, a presidenta sai em defesa e manutenção dos programas sociais, dos propósitos do governo e a ativação de diálogos recentes com os partidos políticos de sua base, governadores e prefeitos, centrais sindicais e movimentos sociais.O sentido da recomposição e reorganização do Governo
Mas o ponto alto do protagonismo da presidenta foi seu empenho direto, com o apoio ativo do ex-presidente Lula, na recomposição e reorganização do seu governo, tendo em vista a formação de uma maioria parlamentar no Senado e, sobretudo na Câmara dos Deputados, considerando principalmente, o papel singular do PMDB nas condições atuais.
Resultante dessa jornada e de sua determinação, a presidenta anunciou no segundo dia de outubro a atual reforma ministerial, que desanuviou o clima político na relação governo-base e permitiu mudanças que podem reforçar a base no Congresso Nacional. No entanto, ainda se exige esforço para sua complementação, sabendo ser impossível conseguir uma convergência completa.
Em suma, mais proveitoso seria prever qual a tendência atual que pode resultar das marchas e contramarchas da crise em evolução.
O curso político – desde o começo de outubro – acentuou o crescimento de manifestações mais amplas contrárias ao impeachment, a intervenção do STF repôs termos da legalidade, a reforma ministerial vai criando novo clima e o próprio disparate jurídico que permeia o pedido de impedimento apresentado – leva de forma convergente ao esvaziamento do impeachment.
Embora as fontes de complicação e instabilidade da crise persistam, esses últimos acontecimentos geram condições para fertilizar novo momento, que permita certa normalidade política, imprescindível para resolver ao mesmo tempo a instabilidade econômica. Enfim, não se deve ter ilusões: a luta é prolongada e contínua, os golpistas continuam entrincheirados, a Operação Lava-Jato produz incertezas, a situação econômica continua imponderável. A luta segue e os desafios devem ser enfrentados pela ampla unidade das forças, democráticas, populares e progressistas.
* ex-presidente do PCdoB