VOCÊ CONHECE O CINEMA INDIANO? ENTREVISTA COM A PROFESSORA PAULA TAINAR DE SOUZA (UNESP)
Por Bruno Yashinishi
Em uma matéria publicada no jornal “O Tempo” (fevereiro de 2022), Ana Elisabeth Diniz afirma que são produzidos em torno de 1000 a 1500 filmes por ano na Índia, empregando mais de 250 mil pessoas. Há alguns anos, a indústria cinematográfica indiana é a maior do mundo, com filmes grandiosos, premiados e extremamente importantes para o setor a nível internacional. No entanto, grande parte do público brasileiro desconhece a riqueza do cinema indiano.
Para nos aproximar desse tesouro asiático entrevistamos a professora e pesquisadora Paula Tainar de Souza. Paula é graduada em História pela UENP, mestra em História pela UEL e doutoranda em História pela UNESP de Assis. Desenvolve pesquisas históricas nas dimensões da Política, Mídia, Poder e Representações, com ênfase no sujeito subalterno, estudos pós-coloniais, decoloniais e nas representações da mulher no cinema hindi/Bollywood.
BY: Professora Paula, a senhora desenvolve pesquisas sobre a relação entre cinema e História desde a sua graduação. Até o mestrado estudou sobre o cinema gótico e o Expressionismo Alemão. Como surgiu seu interesse pelo cinema e quais os principais resultados de suas pesquisas?
PTS: Sempre tive um fascínio pelo audiovisual. Assistir filmes em casa e frequentar o cinema é um dos meus hobbies preferidos, mas, isso só se intensificou quando passei a pensar nas adaptações literárias, observar suas representações e correspondências com a realidade. Após tomar consciência da importância cultural e política do cinema, se tornou meu objeto de pesquisa em História.
Durante o mestrado a minha fonte de pesquisa foi “O Golem”, do expressionismo alemão, com recorte espacial e temporal da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Apesar do contexto conflituoso e da depressão econômica muitas pessoas continuaram comprando ingressos e frequentando o cinema durante a guerra. A minha hipótese foi mostrar que o horror da guerra se converteu em horror na arte, mais especificamente na tela do cinema. Creio que a necessidade de fugir do horror cotidiano e se entreter fez o cinema se tornar também uma válvula de escape de todas as tensões que estavam sendo experienciadas. Existe a necessidade de representar a realidade, que é algo paradoxal porque o artista precisa se envolver com o horror cotidiano para levar isto para a tela do cinema, em contrapartida, a criação é uma tentativa de amenizar essas tensões e fugir do horror da realidade. A conjuntura fértil inspirou produções artísticas no cinema com representações plurais, porque abraçam várias perspectivas e ideologias, por isso é problematizável.
BY: Como exposto na introdução de nossa conversa, o cinema indiano ainda parece ser bastante desconhecido no Brasil. Existem certas confusões entre cinema indiano, “hindi” e Bollywood. Quais seriam as diferenças entre esses termos?
PTS: Basicamente o cinema hindi e de Bollywood fazem parte do cinema indiano, porém, nem todo cinema indiano é bollywoodiano ou produzido em hindi. (risos)
Cinema indiano abrange todas as produções feitas na Índia. O país possui uma produção muito vasta de filmes e estes são produzidos em idiomas distintos, já que cada região tem seu idioma oficial, sem contar os dialetos. Hindi é a língua mais famosa da Índia, mas existem outras, tais como o tamil, bengali, malaiala, telugu, marathi, punjabi, inglês devido à colonização britânica. Quando falamos cinema hindi, cinema tamil, cinema bengali, cinema telugu, estamos nos referindo ao idioma em que o filme foi produzido. Aliás, o idioma escolhido depende da indústria cinematográfica e onde ela está localizada, por isso muitas vezes é visto como sinônimo. Bollywood é a indústria cinematográfica localizada em Mumbai e a maioria das suas produções são em hindi, Tollywood está localizado em Calcutá e suas películas são no idioma bengali, Kollywood fica em Chennai e produz majoritariamente em tamil, a indústria de Mollywood está sediada no Kerala e a língua principal é malaiala. Existem inúmeras indústrias na Índia, todas se inspiraram no nome de Hollywood e se preocupam em preservar aspectos da cultura regional do Estado onde fica sediada, porém, devido à barreira do idioma desconhecemos. Por causa da fama de Bollywood, outras produtoras indianas se apropriam da terminologia quando tem interesse de promover suas obras para o público internacional, por isso gera tanta confusão. A produção anual de 1000-1500 filmes não é apenas de Bollywood, que embora seja responsável por aproximadamente 40% da numerosa bilheteria nacional, não é a indústria que mais produz no país – 70% da produção anual é mérito das indústrias cinematográficas do Sul da Índia.
BY: A senhora passou do Expressionismo Alemão para o cinema indiano em sua trajetória acadêmica. Como foi e quais os motivos que a despertaram para esse interesse?
PTS: Depois de anos de pesquisa em cinema com o foco no Ocidente, talvez por influência da minha formação como professora de yoga, assisti alguns filmes indianos com uma boa crítica e me surpreendi positivamente. Meus pré-conceitos me faziam crer que as películas se resumiam aos musicais e melodramas, entretanto, existem vários trabalhos de qualidade e com temáticas relevantes para o plano social e político que vão muito além. Atualmente eu continuo me aprofundando neste tema e suas peculiaridades, mas eu destaco a diferença entre duas indústrias que são fortes no país: as obras produzidas em Calcutá do cinema bengali têm um apelo crítico e artístico que são fascinantes; enquanto a indústria de cinema hindi que é a mais famosa, Bollywood, tem um padrão mais comercial e generalizado da cultura. O número de produções é elevado, existem narrativas de todos os gêneros e abordando assuntos para todos os gostos. Se interessar pelo cinema indiano foi um caminho sem volta.
BY: Sua tese de doutorado investiga as representações sobre a mulher no Cinema Indiano. Quais as relações entre a produção de filmes e as questões de gênero, políticas e a emancipação feminina na Índia?
PTS: A pesquisa ainda está sendo desenvolvida, mas já é possível afirmar com certeza que após os anos 2000 as questões de gênero estão mais presentes nas produções fílmicas e nos debates. O estupro coletivo que aconteceu em um ônibus no ano de 2012, conhecido como Caso Nirbhaya, foi o estopim para a intensificação da problematização do papel da mulher na Índia e discussão acerca da violência contra o gênero feminino. Como o cinema é frequentado por uma grande quantidade de pessoas, tem um alcance maior, por isso é muito bom que ele se envolva e se posicione a favor do movimento feminista. Como a indústria cinematográfica possui uma política de interesses e a pauta sobre a mulher está tendo muita visibilidade, muitas produtoras embarcam na onda por mero interesse mercadológico, por outro lado, temos cineastas com objetivo ideológico e interesse de intensificar a discussão. Devido à urgência da discussão, em ambos os casos o propósito é atingido, que é propagar questões sociais que precisam ser repensadas em um país como a Índia.
Do ponto de vista jurídico, a constituição indiana contempla os marginalizados, entretanto, muitas leis ainda encontram obstáculos em serem aplicadas na prática devido ao enraizamento de tradições e heranças negativas do período colonial. Faz apenas 75 anos que a Índia se tornou independente, assim, há uma tentativa de recuperar parte da cultura pré-colonial e reconstruir uma sociedade pós-colonial livre da influência dos conquistadores. Sobre gênero, o país possui um sistema patriarcal acentuado, de modo que a pauta feminista se faz necessária, mas as reivindicações são diferentes das exigências ocidentais porque as mulheres indianas enfrentam outros obstáculos. Podemos destacar o casamento infantil e o pagamento do dote, que não fazem parte da nossa realidade brasileira. Nem todas as indianas podem escolher a profissão – privilégio de algumas mulheres de classe mais alta, que também esbarra no problema social do sistema de castas, uma vez que a mulher de casta dita inferior enfrenta mais barreiras do que aquela proveniente de uma classe social mais alta ou com poder aquisitivo maior. A complexidade de se estudar a mulher na Índia reside nesta pluralidade de camadas, já que a emancipação feminina no país necessita passar por várias e em cada uma delas tem uma conjuntura que apresenta obstáculos diferentes, por isso precisa de subterfúgios adequados para dar conta desta pluralidade.
BY: Em busca rápida no YouTube, encontramos vários vídeos sobre o cinema indiano. No entanto, a grande maioria deles é extremamente preconceituosa, pífia e com informações desencontradas. Quais filmes, diretores e livros a senhora indica para aqueles que desejam conhecer melhor o cinema indiano e como ter acesso a eles?
PTS: O livro do jornalista Franthiesco Ballerini, intitulado “Diário de Bollywood”, fornece uma leitura agradável para quem quer começar a estudar a respeito. Outra sugestão é “História do cinema indiano” da Tânia Regina de Araújo, que apresenta um panorama geral sobre o cinema e aspectos sociais do país. E por fim, apesar de ainda não ter sido traduzido para o português, “The cinema of India” do autor Yves Thoraval é um livro bem completo sobre o tema.
Atualmente as plataformas de streaming contribuem com a distribuição e popularização de filmes indianos, permitindo que as produtoras ultrapassem as fronteiras do país, mas no Brasil a indústria de cinema da Índia ainda está conquistando espaço. Durante a pandemia, a película Bulbbul (2020) foi produzida para estrear na Netflix, que é a plataforma que possui o maior catálogo de séries e filmes indianos. No Prime Vídeo da Amazon eu já encontrei alguns títulos, mas não tenho certeza se ainda estão disponíveis. Se tiver interesse em algo mais específico, precisa fugir das plataformas mainstream e buscar outras que ficam sediadas no país de interesse. Por exemplo, a sede da Disney na Índia, Disney+ Hotstar, fica em Mumbai e tem um catálogo que quer atingir o público nacional indiano.
Tenho três recomendações de filmes. “O Tigre Branco” (2021) nos mostra os problemas sociais da Índia e a dinâmica entre castas existentes, embora esta forma de estratificação seja questionada; do gênero da comédia, “PK” é de 2014 e questiona os costumes religiosos de maneira bem descontraída; e, para quem gosta de uma narrativa mais densa, sugiro “Pink” que estreou em 2016 e critica as adversidades que podem ser enfrentadas por mulheres que denunciam seus abusadores. Além disso, indico conhecer o trabalho de dois diretores. Satyajit Ray, considerado o maior e mais famoso cineasta da Índia, possui inúmeras premiações e inspirou inúmeros cineastas indianos e internacionais, uma das obras mais conhecida é a “Trilogia Apu” da década de 1950. Deepa Mehta é uma cineasta que, embora tenha sido criticada pela maneira tradicional que representa suas personagens femininas, teve seu trabalho proibido na Índia devido à trilogia Elements: Fire, Earth and Water, que aborda temáticas ainda vetadas no país durante a década de 1990 e início dos anos 2000.