10 considerações sobre a eliminação brasileira
por Vitor Hugo Haidar da Silva*
1. Futebol é coisa séria. Quer se queira quer não. A ideia de que o futebol é ópio do povo é bobagem. Tudo depende de como ele é encarado. O futebol comporta múltiplas dimensões da experiência humana, em certo sentido ele é um rito, quase religioso (segundo Hobsbawm é a religião profana da classe operária). É também um esporte, portanto algo sem um sentido acabado. Mas ele também é jogo, no qual apostamos nossas fichas, nossas virtudes, nossas representações, nossos anseios. Nos quais nos projetamos e somos projetados por meio dele. Em algum nível, ele é drama, porque comporta as narrativas, em que o jogo entre heróis e vilões é representado.
2. No Brasil, sobre o futebol se projeta uma carga considerável de dispêndio simbólico, isto porque, como nação colonizada, sobre a qual também se jogam centralmente interesses do imperialismo, somos feitos de impedimentos. Ao não se apresentar em outras esferas, foi o futebol ao lado da música, nossa forma de inserção na modernidade. A pátria de chuteiras foi um lema que conduziu a política identitária nacional, primeiro pelo estado, depois pelo estado em união com a mídia. Não à toa, a Rede Globo tornou-se a dona do futebol profissional masculino, sempre vendendo teses ufanistas e expectativas sobre a seleção. Sempre num tom afetivo, por meio de seu “vendedor de EMOÇÕES”, Galvão Bueno.
3. Tudo isso se manifesta no campo de jogo, em que o drama das sociedades se mostra, na carga simbólica que se projeta sobre o jogo. Quando a mídia era responsável por estabilizar estes discursos sobre o futebol, não havia espaço para dissensos. Quando novas formas de mediação com a realidade emergem no século XXI, este drama pode ser vista na carga simbólica que se projetam nas redes sociais. No fim, elas operam sempre na criação de heróis e vilões, incapazes de compreender as nuances que permeiam certas escolhas.
4. O drama da derrota de 1950, entendido como tragédia do futebol, mas também como incapacidade nacional em de fato se fazer grande, foi absorvida pelas gerações que vieram no período posterior a derrota para o Uruguai. Como jogo, a derrota era esperada, o Uruguai era uma seleção experiente e capaz de vencer o Brasil. Mas o ufanismo delirante considerou a seleção vitoriosa antes da hora. Os uruguaios acostumados às adversidades e, porque não dizer, desejos delas, venceram o Brasil, calando o Maracanã lotado. A decepção profunda causada por esta derrota, alimentou o imaginário da sociedade ao longo de anos, e sintetizou-se nas palavras de Nelson Rodrigues: “o complexo de vira-latas”, que também constrói a brasilidade.
5. Quando o Brasil finalmente se sagrou campeão em 1958, os jogadores haviam absorvido as derrotas e as críticas que recaíam sobre os craques nacionais. Pelé dizia que ao vencer a Copa, caiu em prantos, porque a vitória significava cumprir a promessa feita em 1950, para seu pai, Dondinho, ex-jogador fracassado, que diante da derrota no Maracanã, fora flagrado pelo filho aos prantos. Aqueles jogadores não ignoraram a derrota de 1950, pelo contrário, eles quiserem superá-la.
6. Outros tempos, outro futebol. Nem melhor, nem pior. Apenas com uma derrota pior que 1950 para ser administrada. Desde o 7 a 1, tratamos de esquecer a derrota, acreditando que ela é fruto do acaso, da circunstância, da carga emocional daquele jogo. Com isso deixamos de considerar que os 7 a 1 é o placar que representa a diferença do futebol jogado aqui ao da Europa. Mais uma vez decidimos entrar na competição sem nos resguardarmos, permitindo que uma série de medidas fossem tomadas entre os anos 90 e 2000, que facilitaram a mercantilização total do nosso futebol. Em uma estrutura amadora dos clubes, corremos atrás dos impérios, no futebol, como corremos atrás em outros setores econômicos da sociedade. Deixado ao cargo do mercado, a gestão do futebol nacional sempre foi de mau a pior.
7. O jogo de ontem reverbera em alguma medida todos estes nós e impasses, e outros que deixei de fora. Ao longo da Copa, com alguns momentos de brilho e com muito controle dos jogos, a seleção dava impressão de uma equipe equilibrada, capaz de vencer o torneio. No entanto, o time leve, tornava-se lento em alguns momentos dos jogos, em que a bola não girava com a velocidade potencial dos jogadores. Faltava de certo, um elo mais qualificado que Paquetá, bom jogador, mas que sozinho é incapaz de dar ritmo a equipe.
8. A responsabilidade coube a Neymar que como se sabe, é conhecido por segurar demais a bola em certas circunstâncias. A tabela que resultou no gol, relembra os melhores momentos do jogador no Santos, quando Neymar usava os companheiros para potencializar seu talento. Em muitos momentos da Copa, Neymar tinha ao seu lado jogadores capazes de alimentá-lo, no entanto, ele não compreendeu a função que desta vez, ele tinha também a quem alimentar. Erros de decisão, vaidade, anseio por protagonismo. Um pouco de tudo passa pela cabeça do craque, que não conseguiu apagar o 7 a 1 em sua geração. Isso porque não se sentiu responsável verdadeiramente por aquilo, que é uma vergonha na memória do nosso futebol, a maior delas. O 7 a 1 nunca motivou o vaidoso líder da seleção, mas deveria.
9. Tite é ótimo para montar um time sólido, mas tem dificuldades em mudar o jogo com a bola rolando. Ele não pode em hipótese alguma tirar o Vinícius Junior, o jogador a ser sacrificado era Raphinha, obviamente, pela quantidade de finalizações péssimas ao longo da Copa. Errou também ao colocar Alexsandro, no lugar do Militão. De qualquer modo, o gol foi a única desatenção do time na Copa, que não poderia acontecer, quando aconteceu e disso é a história do futebol.
10. Durante o jogo, um lance me indignou, mais do que o erro de marcação no final, que é fruto de uma desatenção total, fruto da incapacidade de Tite em ler o jogo. Nos minutos iniciais do segundo tempo, o Brasil criou a melhor chance do jogo, além do gol, numa troca de passes com Vinícius Júnior, Neymar lhe negou a bola. Um craque não faz isso. Fez uma jogada de cabeça de bagre, virando torto para finalizar, quando na verdade deveria ter devolvido ao rapaz. Fora muitos momentos em que fez o jogo parar, quando deveria fazer andar. Nunca conseguiu assumir a responsabilidade de fato. É um menino. Quer ditar as regras e conseguiu. Nunca deu certo colocar a individualidade acima do coletivo. Falem o que quiser do Pelé, mas ele jogava para o time. Não para si. Como Maradona. Me revoltou como ele não combatia a bola, que passava ao lado dele. Num jogo como esse, tem que disputar tudo. Bastava ele recuar e compor o meio, impediria a troca de passes croata, que no fim, nos cansou. Bastava isso. E num jogo desse, não há espaço para ver apenas. Basta observar o Modric, velho, correndo até o fim do jogo, incansável. Brozovic é fumante, correu mais que Neymar. Tinha que matar a jogada e tomar cartão vermelho, se fosse preciso. É assim que é o futebol, é isso que faz a diferença entre meninos e homens.
* Vitor Hugo Haidar da Silva é professor de Língua Portuguesa e Literatura, licenciado e mestre pela Unicamp.