CEM ANOS DE “NOSFERATU”: O NEGACIONISMO AINDA REGE A SINFONIA DO HORROR

Por Bruno José Yashinishi

Fortemente influenciado pelo contexto da Primeira Guerra Mundial nas primeiras décadas do século XX, o Expressionismo Alemão tornou-se um dos mais importantes movimentos cinematográficos da história. Buscando expressar sentimentos ocultos da alma humana, como o terror, o desespero e o fascínio pelo sombrio, o movimento explorou largamente interpretações e cenários caricatos, constante dualismo entre luzes e sombras e as maquiagens pesadas e impressionantes.
O cineasta Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), grande realizador do cinema mudo, foi um dos maiores expoentes do Expressionismo Alemão. Em 1922, há exatos cem anos atrás, realizou o filme “Nosferatu: uma sinfonia do horror”. O roteiro é uma adaptação quase perfeita do romance “Drácula” (1897) escrito pelo irlandês Bram Stoker, no entanto, o título do filme e os nomes de personagens e lugares da trama precisaram ser alterados, pois a família do escritor não autorizou os direitos autorais da obra na época.
O filme é uma obra prima do gênero do horror, inspirando centenas de outros longas-metragens sobre vampiros e variadas versões da história de Drácula. A trama começa com o encontro do jovem corretor de imóveis Thomas Hutter (Gustav von Wangenheim), devotamente apaixonado por sua esposa Ellen (Greta Schröder), com o sinistro conde Orlok (Max Schreck), em seu castelo nos Montes Cárpatos. Orlok estava interessado em uma residência em Wisborg, portanto Hutter foi pessoalmente negociar com o conde.
Durante os dias de sua estadia no castelo, Hutter percebe vários acontecimentos estranhos como acordar com mordidas em seu pescoço, a vida noturna de Orlok, o apetite deste pelo sangue e seu sono diurno dentro de um caixão. Thomas fica atônito quando o conde acidentalmente viu um pequeno retrato de Ellen que carrega consigo e hipnotizado pela figura da jovem diz: “Que lindo pescoço a sua mulher tem”. A partir daí, Orlok decide comprar a casa em Wisborg imediatamente, já que a residência é vizinha a de Thomas.
Determinado a investigar o que se passa, Hutter descobre que o anfitrião, um sujeito magro, careca, curvado e de aparência extremamente assustadora é, na verdade, o lendário Nosferatu, o vampiro, que a noite suga o sangue de suas vítimas. Tomado pelo pavor e percebendo que Orlok está disposto a ir ao encontro de sua amada Ellen, Thomas foge do castelo, mas acaba sofrendo um acidente e é hospitalizado pelos moradores locais.
Nesse meio tempo, Nosferatu trata de pôr os caixões sobre uma jangada e ser levado com eles para um veleiro que o conduz rumo à Wisborg. Ao se recuperar, Thomas parte imediatamente para sua terra, pois a essa altura já percebe o perigo que Ellen está a correr.
No veleiro, os tripulantes estranham o carregamento funéreo. Percebem uma carta de recomendação para que assegurem o transporte dos caixões e para que não os abram. Curiosos, os tripulantes abrem um dos caixões e se surpreendem com terra e ratos em seu interior. Pouco a pouco a tripulação vai morrendo ao contrair a peste trazida pelos ratos e quando chega ao seu destino, o veleiro já está com seus tripulantes todos mortos.
Quando a embarcação chega ao seu destino traz consigo o diário de bordo alarmando o contágio da peste. As autoridades locais ficam atônitas e declaram estado de emergência, no entanto já era tarde demais, a peste se alastra por Wisborg através dos ratos dizimando boa parte da população e tornando a cidade um caos. O professor Bulwer (John Gottowt), especialista em epidemias, não descobre antídoto contra essa peste.
Quando Hutter finalmente consegue voltar pra casa trata de se encontrar com a amada e velar por sua segurança. Nosferatu leva seus caixões e acomoda-se na velha casa em frente à de Hutter. Durante a noite aparece como uma figura sombria na janela espiando o quarto de Ellen. A jovem descobre que para deter Nosferatu deve lhe oferecer o próprio sangue, pois somente uma mulher pode levá-lo ao “esquecimento do canto do galo”, ou seja, deve garantir que o vampiro fique a sugar o seu sangue até o raiar do dia e só assim enfraqueceria a besta. Com isso Ellen tem frequentes crises de alucinações durante a noite e seu marido sai às pressas procurar um médico.
Nessa noite, o vampiro fica estonteado com a beleza da jovem e percebendo que ela está sozinha consegue se infiltrar em seu quarto. O encontro de Nosferatu com Ellen é terrível. A moça desmaia de pavor enquanto o conde logo morde o seu pescoço e se alimenta de seu sangue. Saciando-se da jovem durante horas, Orlok não percebe o nascer do sol e é surpreendido pelo cantar do galo. Ao tentar fugir agoniza com a claridade e se desfaz em cinzas.
Quando Hutter chega acompanhado do médico vê sua amada morrer em seus braços. Ainda que trágico, o final da história também leva à morte do vampiro e ao fim da peste na cidade.
“Nosferatu” é indispensável aos amantes do cinema mudo. Além disso, é considerado por críticos como um dos 100 filmes mais importantes da história. O conde Orlok, interpretado por Max Schreck é uma das criaturas mais apavorantes já retratadas no cinema e se tornou um ícone na concepção de vampiros influenciando essa figura lendária até os dias atuais. Entretanto, mesmo após um século de seu lançamento, o filme de Murnau ainda amedronta ou tem algo a dizer?
A resposta claramente é positiva e vai além da evidência de que a obra tornou-se um clássico técnico e estético na cinematografia. “Nosferatu” trata do negacionismo. Quando o jovem Thomas vai ao encontro do conde é desencorajado diversas vezes por membros da comunidade local, que relatam os aspectos demoníacos de Orlok. Thomas nega as admoestações por suas convicções na ciência, mas surpreende-se por estar enganado. Quando os ratos são levados no navio, o próprio Nosferatu adverte a tripulação para que não abram os caixões. No entanto, todos acabam mortos pela curiosidade e acabam propagando a peste pela cidade toda. A tentativa de Thomas para salvar a amada também é frustrada, pois ao deixa-la sozinha acaba tornando Ellen vítima do vampiro.
O que o filme centenário tem em comum com o Brasil atual, principalmente frente à pandemia da covid-19, é que evidências tornaram-se dubitáveis. Em um período de dois anos, março de 2020 a março de 2022, estima-se, segundo os dados oficiais, que 654.945 brasileiros perderam suas vidas em decorrência da Covid-19, com um total de 29.350.134 casos da doença no país. Além disso, acentuaram-se as crises sanitárias, sociais e econômicas no Brasil durante esse período.
Essa situação calamitosa foi ainda mais agravada com as atitudes e posicionamentos do presidente Jair Bolsonaro, bem como as ações de seu governo, que foram negligentes, irresponsáveis e contrários ao consenso científico e às medidas de contenção do novo coronavírus. Ao contrário do ditado popular, “contra os argumentos (e falsos argumentos) não existem os fatos”. Diferente do filme, o negacionismo voltou-se contra a ciência, trazendo uma trágica consequência para a sociedade brasileira.
O negacionismo ainda rege a sinfonia de horror. O vampiro da necropolítica ainda se alimenta do sangue de inocentes. Mas como disse Dilma Rousseff no final de seu processo de impeachment (ou golpe) em 2016: “Todos nós seremos julgados pela história”.

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