Sobre a proposta de titulação dos lotes em assentamentos rurais no estado de São Paulo II: pelo direito de informação e escolha

Por Fernando Amorim Rosa

 

Dando continuidade em nosso intento de debater a proposta de titulação dos lotes em assentamentos rurais no estado de São Paulo, no presente artigo, trataremos um pouco mais a respeito do Projeto de Lei (PL) nº 410/2021 e daquela que deveria ser uma escolha garantida às famílias assentadas: Título de Domínio (TD) ou Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).

Conforme já tratado em texto anterior, a proposta de titulação, na forma como está apresentada no PL 410/2021, traz consigo várias questões não respondidas e riscos aos produtores rurais assentados, como, por exemplo, o endividamento compulsório com o Estado, impondo às famílias uma dívida que, caso não paga, poderá levar a perda de suas terras.

Considerando-se que em algumas regiões do estado o preço a ser pago pelo Título de Domínio poderá ser de aproximadamente R$ 100.000,00 e o atual cenário de desmonte das políticas públicas de geração de renda voltadas aos agricultores familiares, tal endividamento imposto às famílias deve ser motivo de preocupação e atenção.

No mesmo texto tratávamos, também, das reais intenções contidas no PL 410/2021 e a quem de fato interessaria a proposta de titulação dos lotes rurais na forma como está apresentada. Caminhando nesse sentido, passemos a tratar do PL e da imposição do Título de Domínio.

O Projeto de Lei prevê, em seu Art. 3º, inciso II, que “será expedido o título de domínio, sob as condições resolutivas […]”. Dentre tais condições resolutivas, encontra-se a obrigatoriedade de pagamento do preço do título que, como já é sabido, está proposto em 10% do valor da terra nua, conforme tabela oficial do Instituto de Economia Agrícola (IEA), da Secretaria de Estado de Agricultura e Abastecimento. Acontece que, conforme traz o PL, as obrigações previstas “possuem a natureza de condições resolutivas e seu inadimplemento ensejará o cancelamento do título e a reversão da gleba ao patrimônio do Estado”. Considerando-se tais condições e tendo em vista que, de acordo com o parágrafo 3º, do inciso VII, do mesmo artigo, “as condições de pagamento e os encargos financeiros serão previstos em regulamento”, fica suficientemente evidente o risco a que estarão sujeitas as famílias assentadas ao assumir uma dívida compulsória, de valor consideravelmente alto, cujas condições de pagamento são desconhecidas e serão estabelecidas em futura regulamentação e cujo não pagamento implicará em perda das terras.

Somando-se ao risco exposto, constata-se, também, a possível inconstitucionalidade do Projeto de Lei (e, aqui, usa-se “possível inconstitucionalidade” apenas como medida de cautela, devido a não possuir amplo conhecimento jurídico. Entretanto, basta uma simples leitura e interpretação de texto para que se constate o fato). Vamos ao que dizem os textos.

O texto do PL, conforme já exposto, prevê que será expedida a “titulação de domínio da área ao beneficiário”, nos termos da lei, e define que “o título de domínio é o instrumento com força de escritura pública que transfere ao beneficiário, de forma onerosa e em caráter definitivo, a propriedade resolúvel do imóvel objeto dos planos públicos de valorização e aproveitamento dos recursos fundiários, sob as condições resolutivas previstas[…]”. Aqui, nota-se uma contradição, se, conforme propagandeado, a titulação de domínio tornará os assentados em proprietários dos lotes, dando a esses o caráter de propriedade privada, como tal propriedade poderá ser resolúvel, podendo o título ser revogado em caso de não cumprimento das condições resolutivas? Mais uma pergunta para a qual não encontramos resposta, mas voltemos à questão da (possível) inconstitucionalidade.

Analisemos então o que diz a Constituição do Estado de São Paulo. O texto constitucional, em seu Art. 187, estabelece que “a concessão real de uso de terras públicas far-se-á por meio de contrato onde constarão, obrigatoriamente, além de outras que forem estabelecidas pelas partes, cláusulas definidoras […] ”. Portanto, não existe na Constituição Estadual qualquer previsão de titulação de domínio, conforme propõe o Projeto de Lei. Constata-se, então, a primeira (possível) inconstitucionalidade.

Passemos agora a análise da Constituição Federal que, em seu Art. 189, prevê que “os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos”. Observa-se no texto a possibilidade aos beneficiários de serem contemplados com o título de domínio ou com a concessão de uso, com direito de livre escolha entre uma modalidade ou outra. Portanto, nota-se, mais uma vez, (possível) inconstitucionalidade, dado que a imposição do Título de Domínio não está em sintonia com o previsto na própria Constituição Federal.

A expedição do Título de Domínio tem sido propagandeada como forma de garantir aos produtores rurais assentados maior segurança jurídica sobre suas terras, entretanto, na forma como está proposta, tal modalidade de titulação nem ao menos garante a hereditariedade do lote, já que o PL prevê que, em caso de falecimento e “não havendo sucessores que atendam aos requisitos de elegibilidade desta lei, ou que queiram explorar o lote, este poderá ser alienado a terceiro que atenda aos aludidos requisitos, desde que o beneficiário tenha quitado o preço […]”. Fica então expresso, na letra da lei, que caso não queiram explorar o lote ou não atendam aos requisitos de elegibilidade para tal, os herdeiros apenas poderão transferi-lo a terceiro se o beneficiário tiver quitado a dívida que lhe foi imposta. Resta a dúvida: em casos de falecimento de beneficiários que ainda não tenham quitado a dívida com o Estado, que direitos terão os sucessores, tendo em vista que o PL prevê, para casos de dívidas não quitadas, “o cancelamento do título e a reversão da gleba ao patrimônio do Estado”? Considerando que o PL não apresenta a possibilidade de assunção da dívida por sucessores em caso de falecimento do beneficiário, encontramos mais uma pergunta sem resposta.

Por outro lado, a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) seria o instrumento que realmente possibilitaria maior segurança jurídica às famílias assentadas, sendo passível de registro em cartório, garantido o direito de exploração por tempo indeterminado e a hereditariedade do lote. Dada a conjuntura de simultâneas crises econômica, política, social, institucional e o quadro atual de desmonte de políticas públicas em curso, tal modalidade, além de proporcionar maior segurança quando comparada ao Título de Domínio, evitaria a privatização da reforma agrária, a perda das terras pelas famílias e a consequente reconcentração fundiária no estado.

Frente a grandeza dos riscos apresentados não apenas nesse texto e nos anteriormente publicados, mas também por diferentes entidades, associações, sujeitos e movimentos sociais, nos perguntamos quais as reais intencionalidades contidas na proposta na forma como está colocada e qual a razão do regime de urgência na tramitação do Projeto de Lei.

Precisamos esclarecer o que leva a tamanho medo do debate, impondo uma titulação e endividamento sem apresentar alternativas às famílias assentadas. Por que não retirar o regime de urgência, dando à sociedade a possibilidade de debater democraticamente e se informar a respeito da matéria e, mais que isso, por que não apresentar às famílias assentadas a possibilidade de livre escolha entre Título de Domínio e Concessão de Direito Real de Uso (CRDU)?

Resta evidente que o texto do Projeto de Lei 410/2021 e a forma como esse vem sendo alardeado objetivam transmitir à sociedade a mensagem de que a titulação de domínio seria de interesse geral, buscando dar aparência de interesses coletivos a interesses que na realidade são apenas de determinada classe. Encerrando, cabe lembrarmos dos sempre atuais Marx e Engels que, há quase dois séculos, já alertavam para o fato de que a classe dominante, para atingir seus fins, apresenta seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, dando às suas ideias a forma da universalidade e as apresentando como as únicas racionais e universalmente válidas.  Por fim, destacamos a necessidade de retirada do regime de urgência na tramitação do Projeto de Lei 410/2021, garantindo o debate democrático e o direito de informação e escolha aos verdadeiros interessados.

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