A confraria dos jornalistas mortos
É como se as forças cósmicas estivessem sugando almas nobres. As vigas mestras de uma nova carpintaria universal. Os velhos companheiros, um a um, embarcam na longa viagem homenageados pelos terráqueos que lhes prestam o reconhecimento público.
As notas infaustas já não surpreendem mais. Vítimas de emboscadas de políticos e fazendeiros, enfartes, vícios e de covid, entre outros males, vão decolando rumo aos céus profundos. Recordo de Tim Lopes, Marcos Faerman, Randau Marques, Joelmir Beting, Milton Coelho da Graça, José Paulo de Andrade, José Negreiros, Antônio Arrais, Ribamar de Oliveira, Artur Xexéo, Alípio Freire, e os demais -a lista é infinita – perdoem minha falta de memória. As estrelas brilham no céu.
A confraria (substantivo feminino que designa associação ou conjunto de pessoas do mesmo ofício, categoria ou que levam o mesmo modo de vida) é imensa. São os expoentes da comunicação escrita, falada e televisada – Gugu Liberato entre eles – que compõem a alma coletiva do verbo divino. Meus contemporâneos, os valentes jornalistas da geração de chumbo, combativa, idealista, despojada e generosa, continuam desembarcando desta nave desgovernada.
“É uma geração que, infelizmente, está se despedindo. Lutamos tanto e olha como estamos” – constata, pesarosa, uma das mais vigorosas intérpretes da geração gloriosa, minha querida amiga Cíntia Sasse (ex-TV Globo, revista Exame, Folha de S.Paulo e diretora da Gazeta Mercantil em Belém do Pará), desde os nossos tempos da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Como jornalista especializada em Economia, Cíntia – viúva de Aluysio Santos, outro diamante de dignidade que brilha no céu – atualmente atua no Senado Federal em Brasília.
Minha amiga acompanha perplexa a transição insólita. O estudo “Violência contra comunicadores no Brasil”, elaborado pela Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp) e o Conselho do Ministério Público, aponta o Brasil como o sexto País mais perigoso do mundo para jornalistas. 64 profissionais de Imprensa foram mortos no Brasil entre 1995 e 2018.
Só perdemos para a Síria, Iraque, Somália, Paquistão e o México. Nossos mortos são profissionais de Imprensa e comunicação, blogueiros e radialistas no exercício da profissão (Unesco). A situação configura “verdadeira violação á liberdade de expressão”, “preocupante” e revela “cenário sistemático”. O Rio de Janeiro teve 13 mortos; Bahia, 7; Maranhão, 6. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) confirmou estes dados em 30 de abril de 2019. Entre abril de 2020 e março de 2021, 169 jornalistas morreram de covid.
Os velhos companheiros vão partindo para o andar de cima, muitas vezes sem pompa nem circunstância, nem sempre enaltecidos por homenagens ou reconhecimento público. Os da minha geração não faziam questão disso. Foram exemplos de talento, dedicação, companheirismo e caráter. Avaliava-se o valor de um homem dotado de caráter, essa virtude cada vez mais rara.
Deus fez o que quis e quis o que fez, por isso, creio, eu continuo azucrinando neste Contratempo. Tudo o que começa acaba, e tudo o que acaba recomeça, cada um de nós é esse pouco e este muito, nesta síntese complexa do óbvio.
O pó ao pó, o barro ao barro, nesta taboa de salvação me agarro. Inspirei-me num sonho para escrever esta crónica, no sonho que é o espelho de minh’ alma, num sonho em que escapei da morte, a senhora do destino, para mim tantas vezes adiada. Fui bruscamente sacudido da ilusão do sonho desvanecido, e regressei inteiro do misterioso mundo do sono.
E orei, graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do Universo, que pelo poder de tua misericórdia me restituiu, vivo e latejante, a minh ‘ alma. Assim mantive a calma, desperto em cada um dos cinco sentidos, e pensei que os amigos partem, talvez, em solidariedade á extinção dos altares onde atuaram como sacerdotes, as redações de jornais, revistas, rádios e televisões.
Não há mais o Jornal da Tarde, o Diário da Noite, o Diário de São Paulo, o Diário Popular, a Gazeta Mercantil, o Jornal do Brasil – quem poderia imaginar o fim da Editora Abril dos Civita, de tantos e famosos títulos? – a revista Época, e poderia encher páginas e páginas com títulos e nomes. O espaço é curto.
Acordei de meu sonho perturbador e iluminado, e meu mundo não acabou. Louvado sejas tu, Senhor, por isso, aquilo ou aquilo’ outro. O espelho e os sonhos são semelhantes: é como a imagem do homem diante de si próprio.
Nós, os jornalistas, como Quixotes modernos, travamos o bom combate tocando nossos moinhos de vento, neste Vale de lágrimas. Somos seres alquiméricos, discretos e silenciosos, armados de ideias, teclados, imagens e microfones, no sacerdócio da comunicação social.
Libertários, inimigos figadais da opressão e do autoritarismo fascistoide, denunciando tiranos sanguinários, burocratas insensíveis e fardados negocistas, os vampiros do trabalho da população oprimida, responsáveis pelas injustiças sociais, trapaças e maracutaias do poder.
E, quem assim não for no exercício da profissão, desconfie, são os falsos profetas. Nosso último combatente a decolar foi Jaime Sautchuk, com quem tive a honra de trabalhar em Brasília. Como homenagem a ele, e aos jovens colegas de profissão, reproduzo, a seguir, o texto lido por Carlos, seu filho mais velho, após rápido velório em Brasília.