Anos de chumbo: A farsa no fim de Marighella – Parte 3
João Teixeira*
Na noite escura da ditadura civil-militar (1964/85), de violência incerta e desmedida – além de Marighella, o valioso alvo-mor, foram mortos uma investigadora, um protético e ferido o delegado Tucunduva, coordenador da operação policial, desafeto do delegado Fleury, deixando um cheiro forte no ar de “fogo amigo” entre os policiais -, a farsa pública na emboscada do “inimigo número um” conteve os ingredientes da mais perfeita ópera-bufa tropical.
“… ao contrário da ópera cômica, a ópera-bufa “… introduz personagens burlescas, de tipos facetos ou petuscos…” – na definição de mestre Aurélio (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, pg 1226, de Aurélio Buarque de Holanda).
A começar pelo icónico Marighella, em primeiro lugar.
“Minha avó era negra houssá, ela veio foi da África, num navio negreiro. Meu pai veio foi da Itália, operário imigrante. O Brasil é mestiço, mistura de índio, de negro, de branco”.
Carlos Marighella, Carlinhos em família, nasceu em Salvador (BA), em 5 de dezembro de 1911, filho de Maria Rita Marighella e de Augusto Marighella.
Inscreveu seu nome na história.
Sobre Marighella, o escritor Jorge Amado, seu ex-companheiro na Constituinte de 1946, na fase de legalidade do PCB, escreveu:
“Marighella é o centro, a figura política por excelência da luta contra a ditadura, aquele que representou o que de melhor tem o povo brasileiro”.
O mulato comunista guerrilheiro baiano, frequentador de terreiros de umbanda e filho de Oxóssi, nascera para lutar e sorrir.
Sorria como poucos nas mais diversas situações.
Emotivo, miscigenado, Marighella tinha emoções fortes.
Chorava também, como em 1956, quando o mundo tomou conhecimento do Relatório Kruschev, sobre os crimes de Stálin.
Como homem de Cuba no Brasil, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), na resistência armada contra o regime dos generais, Marighella foi assassinado sem esboçar reação, como reconheceu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, resgatando sua imagem na História.
Passava das 18 horas quando o dono da banca de jornais na esquina das alamedas Lorena e Casa Branca notou um movimento incomum na área.
Dezenas de homens haviam surgido de repente vestidos como garis da prefeitura.
Era muito gari para pouco lixo.
Estranhou mas deixou para lá, queria mesmo ir logo para casa para assistir ao clássico Corinthians e Santos.
O quarteirão onde chegaria Marighella estava coalhada de policiais.
A zorra em que se transformou a pesada operação policial (27 homens, duas mulheres e um cão) acabou sendo a explosão inevitável pela alta tensão gerada pelo cerco ao valente Marighella.
A farsa do fim de Marighella foi uma cobertura jornalística inesquecível para uma das estrelas do jornalismo policial brasileiro, o jornalista, escritor e apresentador de TV Percival de Souza.
Há mais de meio século, na noite em que mataram Marighella, o solerte repórter iniciante do Jornal da Tarde (JT) campanava um rádio-transmissor da polícia á cata de notícias.
Ouviu, então, que a polícia acabara de matar o “marginal Berinjela” – assim mesmo, Beringela, o nome da leguminosa arroxeada e apelido de bandido negro pobre da periferia.
Não valia manchete mas foi conferir a ocorrência e…bomba!Bomba!
A trágica e sensacional morte do “inimigo número um” envolvia subversão, religiosos na ALN, versões e contraversoes… uma confusão dos diabos que até hoje intriga os pesquisadores.
Após o telefonema fatal para a Livraria Duas Cidades, a movimentação foi intensa na área policial.
O delegado Tucunduva gritava ordens para todos, delegados, investigadores, motoristas etecétera, quando os freis dominicanos Ivo e Fernando eram levados para o fusca da emboscada.
Alvoroço geral.
Um investigador, Aduzindo Urbe, estava ao volante de um dos carros do forte comboio.
O “carro das iscas” – os freis – são escoltados por um carro do lado direito, outro pelo esquerdo, um na frente e outro atrás.
Na saída do Dops, o delegado Tucunduva ameaçou:
_ Fernando, se isso for mentira, você vai pagar caro!
O investigador Uribe, assim que deu a partida no carro, esbravejou:
_ Se não der certo, a culpa não é de vocês, é deste aparato.
Dirigiu o fusca até a Alameda Casa Branca e tudo sucedeu com a rapidez de um raio.
O repórter do JT viu que Marighella não era Berinjela e pediu reforço á redação.
As autoridades civis e militares chegavam ao local em carros oficiais verificando a cena histórica.
Eufóricos, os policiais garganteavam, contavam vantagens, valorizando o feito.
No clima eletrizante – o fim de Marighella era o ocaso da esquerda armada – um jovem mais atrevido, cabelo cortado como reco (soldado) do Exército, agarrou pelo braço o repórter Percival, levando -o como suspeito á presença do delegado Fleury.
_ Porra, esse é o Percival do JT!
_ Por que você não falou?!
_ Ninguém me perguntou nada.
_ Puta que pariu! – Fleury disparou.
Antes, o tira da pesada, algoz da esquerda armada que nunca conseguiu matá-lo, havia rendido os fotógrafos impedindo-os de fazer imagens.
Três policiais tiveram muita dificuldade para ajeitar o corpulento cadáver no banco de trás do fusca, inverossímil sob vários aspectos.
O fotógrafo Sérgio Jorge chegou á redação da revista Manchete com a foto liberada do cadáver de Marighella.
Contou ao chefe a armação que presenciara e ouviu o inevitável: a versão definitiva, oficial, a autorizada por Fleury, seria publicada.
– Todo mundo me dizia para não me meter com essas coisas, que era muito perigoso.
Era o único fotógrafo vivo dos que foram testemunhas da farsa oficial desvendada pela Comissão da Verdade.
Palavras-chave: a morte de Marighella; anos de chumbo.
*João Teixeira, jornalista e escritor, integra o Conselho Editorial do Jornal Contratempo.