Anos de chumbo A natureza inspirada do capitão Lamarca
João Teixeira*
A esquerda armada, que Luiz Carlos Prestes chamara de “sarna do revolucionarismo pequeno-burguês”, produziu herois, vilões, espiões, torturadores, a “tigrada” implacável açulada por generais arbitrários e confiantes na ditadura como forma de governo.
Prestes, Grabois, Apolônio, Marighella, Lamarca, entre outros expoentes da revolução no Brasil, inspiram historiadores, educadores, escritores, poetas e cantores, como símbolos do imaginário popular.
O fenômeno mental, psicológico e espiritual dos revolucionários, de infinita dimensão, concebe seus próprios filhos.
Reais ou imaginários.
Verdadeiros ou falsos.
Biológicos ou inventados.
No tocante a este último tópico, história das mais curiosas, que nos foi contada por Pedro Lobo de Oliveira – ex-sargento comunista cassado pelo AI-1, de 1964, companheiro de lutas do capitão Carlos Lamarca, desertor do IV RI de Quitaúna, na Vanguarda Popular Revolucionária, VPR, ex-exilado político na antiga Alemanha Oriental, em KarlmarxStadat – alinhando-se, portanto, no Olimpo da revolução brasileira.
O insólito fato verificou -se em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, durante o lançamento de um livro de poesias – Entre tanto…Amor, com uma poesia em homenagem a Lamarca -, de autoria do poeta Gil Rosa, que acabou na delegacia de Polícia com o indiciamento do autor num processo por “falsidade ideológica”.
Foi o resultado do vale-tudo pelo sucesso.
A lógica competitiva exacerbada de nossos tempos, de máxima expansão da riqueza e do abismo social, de abundância e miséria global, gera delírios e “ismos” totalitários que infernizam nossas vidas e ameaçam a democracia nas nações.
Como antena da raça, o poeta, o fingidor nato que “… finge tão completamente que finge ser dor a dor que deveras sente…”, conforme Fernando Pessoa, não teve dúvidas.
O poeta interiorano não só fingia.
Mentira.
Gil Rosa não usava apenas “palavras simples para fazer poesia e atingir o público”, como dizia.
Não era filho do capitão Lamarca, ícone da esquerda armada que o exibia como troféu, dotado de fina sensibilidade política que o levou a salvar a vida do embaixador suíço Giovani Enrico Bucher, sequestrado no dia 7 de dezembro de 1970, e mantido prisioneiro por 40 dias numa casinha de subúrbio, na ladeira Tacaratu, em Rocha Miranda (RJ).
– O comandante sou eu, decido eu – “Paulista” (Lamarca), o comandante da operação da VPR, chamou para si a responsabilidade de não executar o prisioneiro, para desgosto da militância perplexa, sedenta de sangue.
Sentiam-se desmoralizados pelo governo militar que protelava “ad infinitum” a negociação e negociava nome por nome e negava a liberdade para 17 “terroristas” processados por crimes de sangue na elaboração da lista de 70 presos políticos.
O congelamento dos preços por 90 dias e as roletas livres nas estações de trens no RJ – o mais alto preço pedido por um diplomata – também não foram atendidos.
Voltemos á mentira do falso filho de Lamarca.
O lúdico, não, não morou em Cuba, nem na França; não saiu do País aos 5 anos de idade com a família do guerrilheiro que morreu doente e cadavérico, dormindo sob uma baraúna em Ipupiara, no sertão da Bahia, ás 15h30 do dia 17 de setembro de 1971.
Antes de ser morto com 5 tiros, ouviu de seu fiel escudeiro, José Campos Barreto, o Zequinha, líder sindical em Osasco, em 1968, o Lula da época, que carregou Lamarca nos ombros por 300 km serra adentro:
– Capitão, os homens estão aí.
Zequinha correu pela caatinga e, antes que fosse fuzilado pelas costas, ainda gritou:
– Abaixo a ditadura!
O ladino poeta tomou sua taça de poesia, e provou do seu fel.
Ele sabia encenar e fingia bem.
Dizia e sentia como se fosse mesmo o que imaginava ser.
Quem sabe – o mentiroso contumaz crê na fábula que inventa – se tinha mesmo necessidade de sua profunda decepçao com a juventude brasileira, ao “voltar” para o Brasil em 1981?
A volta de quem nunca foi.
Gil Rosa identificava-se como filho (espiritual?) do mito guerrilheiro com seus interlocutores – e pedia discrição por parte deles.
– Ele é ingênuo, entrou nessa de bobeira – o também poeta e jornalista Reinaldo de Sá chegou a essa conclusão, após ter conversado com a criatura, num barzinho, tomando cerveja.
Tudo dava certo até que esbarrou com Pedro Lobo em São José.
O velho companheiro de lutas de Lamarca, amigo da família, da viúva Marina e do filho, César, não gostou da tramoia e chamou a polícia.
– Queria só preservar o nome da família e do filho de Lamarca – explicou Lobo.
Armou-se, então a cena de pastelão na Editora Brasiliense, numa quinta de movimento incomum, que prometia um lançamento literário de sucesso – ó, o sucesso efêmero, onde estás que não me respondes? – inesquecível para os presentes.
– Olá. Como vai? Onde estão os companheiros?
Sabia de cor o dialeto esquerdista.
– Eles estáo aqui – o ex-guerrilheiro e militar da reserva apontou os 2 investigadores que o acompanhavam e lhe deram imediata voz de prisão.
Na delegacia da Rua Humaitá, o delegado Mário da Fonseca, o apresentou a 2 pessoas:
– Você os conhece?
– Não – o poeta foi sincero.
– Não conhece tua mãe e teu irmão?! – reforçou Pedro Lobo.
– Pois esta é a viúva e o filho do capitão Lamarca que vieram do Rio para conhecé-lo!
A casa caiu.
O poeta Gil Rosa, enfim, contou a verdade
Aproveitava-se da história para vender mais livros.
A lorota deu certo em várias cidades.
Emgabelou a noiva e vários vereadores joseenses.
Quando Gil foi preso, a moça correu á Câmara Municipal para denunciar a ocorrência.
– A polícia prendeu o filho do capitão Lamarca.
Os vereadores Luís Paulo Costa, Fernando Delgado e Bérgamo Pedrosa foram ao DP da Rua Humaitá e só então descobriram que também haviam sido ludibriados pelo Gil bom de papo.
O nefelibata, de cabeça nas nuvens, enganava facilmente.
O falso filho do capitão Lamarca acabou como notícia de jornal.
Palavras-chave: anos de chumbo; o falso filho do capitão Lamarca.
*João Teixeira, jornalista, poeta e escritor, é membro do Conselho Editorial do Jornal Contratempo.