Anos de Chumbo – O guerrilheiro-sócio da ABI

João Teixeira*
“Ih, Viegas, os fuzileiros”.
As tropas atacaram. Marco Antonio deu um salto para dentro da cabana, gritando isso, e correu para pegar uma arma M-1 pendurada na parede da frente.
Meio desentendido, Viegas largou no fogo a panela, a carne e a faca, adeus jantar!
Os dois guerrilheiros saíram da cabana com as armas engatilhadas.
“Fogo nos comunistas”.
Os soldados receberam a ordem e a direção do alvo e iniciou-se o formidável combate entre as tropas do Batalhão Humaitá dos Fuzileiros Navais, especializado em contrainssurgencia, e a guerrilha do Movimento Armado Revolucionário (MAR) nas montanhas do Rio de Janeiro, em agosto de 1969.
Os guerrilheiros viam os soldados protegidos por trás das bananeiras, armados de fuzis Fal e M-16.
Resistiram e forçaram o recuo das tropas, travando-se um violento combate que durou uns 15 minutos, no terreno irregular do litoral fluminense.
O combate, um dos poucos conhecidos da guerrilha urbana, mereceu ampla cobertura da Imprensa.
A Cabana do Jacu era o portal da guerrilha rural carioca, a tentativa de reeditar Caparaó, sem os mesmos erros.
Lá estavam Marco Antonio, Antônio Duarte e Pedro Viegas, aguardando os companheiros da cidade, os marinheiros que haviam empreendido uma fuga espetacular da Penitenciária Lemos de Brito.
Caçados pela polícia e os militares, o MAR estava articulado com a VPR de Lamarca e a ALN de Marighella, na resistência armada á ditadura civil-militar (1964/85).
Viegas, ferido nas montanhas, escapou do cerco das tropas. Dormiu em um capinzal ouvindo o ronco dos helicópteros acima dele.
O tiro o atingiu na coxa direita, uns quatro dedos acima do joelho, e o ferimento tirava a firmeza da arma.
Tentava andar, e caía. Perdera o grupo de Capitani e teve que sobreviver sozinho, nas piores condições.
Esfomeado, comeu limões vermelhos, que confundiu com tangerina. Usava a M-16 como bengala.
Vagou pelas montanhas, achando que as tropas do Governo haviam desistido de procurá-lo.
Em “Rebelião dos Marinheiros” (Artes e Ofícios, 1997, pág. 140), Avelino Capitani aborda o assunto, mas o episódio é obscuro na História do Brasil.
O esquecimento deliberado, por conveniências políticas, como a anistia de 1979, não apaga o passado que volta e meia ressurge, vem á tona.
De repente, a figura de Lamarca surge como fantasma na Imprensa, provocando calafrios.
A nação com passado pendente, vive assustada.
Quem deve, não dorme sossegado. A nação mal resolvida é como um tumor que lateja e dói antes de ser lancetado.
A “lei do esquecimento” imposta no Brasil em nome da anistia incomoda.
Paul Ricoeur examinou o assunto, ou seja, o que ocorre quando uma sociedade resolve esquecer certos acontecimentos do passado em nome da pacificação ou de conveniências presentes e futuras, comp foi o caso da Alemanha no após-guerra para esquecer a tragédia do nazismo.
Ou da França, no mesmo período, para tentar esquecer o governo colaboracionista de Vichy, ou da violenta guerra colonialista da Argélia.
Anistia não é perdão. É necessidade política de trégua do poder em certa etapa da vida do País.
Perdão é categoria não jurídica – não pode ser concedi por lei.
E implica esquecer mágoas.
A anistia quis cicatrizar á força a ferida que ainda sangra.
O sangramento do guerrilheiro Viegas já havia coagulado, quando ele entrou altas horas em Monsuaba, o povo dormia.
Mangaratiba e Conceição do Jacareí eram lugares tranquilos, paradisíacos, mas ele havia ido parar nas mãos do inimigo.
As tropas militares estavam concentradas em Monsuaba e cobriam a praia com barracas de campanha.
“Boa noite”.
Entrou no bar e cumprimentou o balconista.
Pediu um refrigerante (Crush) e um sanduíche de queijo.
Então, ouviu vozes de comando, em aparelhos de telefonia, que falavam claramente em Capitani.
Estava no QG de Operações Antiguerrilha instalado em Monsuaba.
“Sou jornalista e estou fazendo a cobertura das manobras militares. Já tenho material suficiente para escrever a reportagem”
“Você está frito. Há um bloqueio na entrada da cidade, está proibida a presença de estranhos na área, inclusive da Imprensa!”.
“Cadé seus documentos?”
Tirou do bolso e mostrou sua carteira de sócio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
O comerciante disse que poderia tentar tirá -lo dali no dia seguinte, ia comprar pão fora e não costumava ser revistado.
O guerrilheiro-sócio da ABI achou que era outro ato da comédia, mas resolveu arriscar.
Ia tomar banho, fazer a barba e dormir na casa do homem.
O vendeiro só lhe pediu um favor: “ponha o nome do meu bar na sua reportagem”.
Preparava-se para fazer a barba quando ouviu o barulho e a porta da cozinha voando sobre sua cabeça.
Quando deu por si, já estava sem o cinto e os sapatos, os braços dobrados para trás, nas costas, fortemente seguro pelos soldados.
“O jogo acabou para você, Viegas” – á sua frente, o oficial deu -lhe voz de prisão.
Pedro França Viegas foi preso no dia 12 de agosto de 1969.
“Guerrilheiro preso estava ferido” – o jornal Última Hora (UH) deu em manchete, no dia seguinte.
A amnésia coletiva impede a interpretação do passado.
Só a narrativa e a memória concedem o perdão.
Palavras-chave: MAR; resistência armada; jornalistas perseguidos.
*João Teixeira é jornalista e escritor e membro do Conselho Editorial do Jornal Contratempo.

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