Arte de resistência – I

A geração de chumbo – as pessoas que fazem parte do ‘baby boom’, nascidas após 1945, ao fim da II Guerra Mundial – atravessou o século de extremos. O comunismo e o nazismo provocaram milhões de mortos causando marcas profundas na Humanidade.
Aprendemos que a consolidação da democracia é uma luta permanente para evitar novas hecatombes. Trilhamos caminhos onde eles não existem – ‘se hace camino al caminar’, iluminou-nos Unamuno -, perdemo-nos e nos reencontramos, tudo ao mesmo tempo.
Nostálgicos, talvez, dos tempos heroicos, do romantismo idealista e da efervescência cultural, das lutas e transformações, de tantos refrãos e cantos de paz!
A transformação política e social, identificada com o abortado projeto nacional-reformista do bloco progressista que sustentava o presidente João Goulart (Jango), até 1964, estava na raiz da criação artística e cultural.
O canto, a poesia, o cinema, o teatro, o jornalismo e a literatura foram trincheiras de resistência contra o arbítrio e o obscurantismo impostos pelo golpe civil-militar (1964/85).
O célebre Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), incendiada, fechada e clandestina após o golpe dos generais, frutificou como polo de criação artística que originou o teatro político brasileiro, a canção de protesto, o Cinema Novo.
O CPC revelou os dramaturgos Oduvaldo Viana Filho (o Vianinha, autor de ‘A Grande Família’, da TV); Giani Ratto; Paulo Pontes; Flávio Rangel; e João das Neves.
O engajamento político da intelectualidade cabocla ficou claro logo após o golpe, no episódio conhecido como “Os Oito da Glória”. “Abaixo a ditadura”. “Viva a liberdade”. Os intelectuais ergueram faixas e gritaram os lemas que seriam propagados nas ruas logo em seguida. O protesto original – os militares ficaram surpresos – ocorreu no dia 11 de novembro de 1965, diante do Hotel Glória, na Praia do Flamengo, zona sul do Rio, onde Castelo recebia líderes da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Estavam lá, jornalistas (Paulo Francis, Antônio Callado e Carlos Heitor Cony); cineastas (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Mário Carneiro); embaixador (Jaime de Azevedo Rodrigues); diretor de teatro (Flávio Rangel); poeta (Thiago de Mello); e político (Márcio Moreira Alves).
Foram presos e levados para o quartel da Polícia do Exército (PE), na Barão de Mesquita. Thiago de Mello fugiu antes da prisão. Os demais passaram 11 dias presos. Os militares não tocaram nos intelectuais ilustres mas estes ouviam os gritos de outros presos torturados. Era a avant-premiere de um filme de terror.
O episódio repercutiu no exterior e a repercussão foi ruim para os militares que compreenderam logo que a repressão á classe artística não seria simples nem fácil.
O recente falecimento da atriz Eva Vilma, revelou-nos um momento magnífico, uma imagem rara, dos “anos de chumbo”: de mãos dadas, as atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Leila Diniz, Odete Lara, Eva Vilma e Norma Benghell, desfilam na “Passeata dos Cem Mil”, no dia 26 de junho de 1968. O protesto histórico completa 53 anos este mês.
Eva Vilma explicou a importância da foto famosa, emblemática, de um período difícil para a cultura que exigiu a mobilização da classe artística contra a censura.
Tiveram uma experiência muito interessante, ignorada pela maioria das pessoas. A mobilização das atrizes foi planejada para ocorrer nos teatros municipais do Rio é de São Paulo, três dias e três noites, ininterruptamente. As atrizes revezavam-se no protesto do palco para o público.
O Teatro de Arena (1956/70), de Augusto Boal, em SP, marcou época com “Revolução na América do Sul” (1960); “Arena conta Zumbi”; “Arena conta Bahia”; ” Tempo de Guerra”; “Arena conta Tiradentes”; e a “I Feira Paulista de Opiniáo”, no Teatro Ruth Escobar, que gerou movimento de protesto da classe artística contra a censura militar.
O Arena revelou nomes como Chico de Assis, Fúlvio Abramo, Gianfrancesco Guarnieri, Luís Carlos Arutin, Vânia Santana, todos envolvidos com organizações clandestinas de oposição ao regime. O poeta Thiago de Mello era monitorado pelos órgãos de segurança. Atores como Flávio Migliaccio, Carlos Vereza, Flávio Sabag, Kleber Santos, Antônio Abujamra, Fernanda Montenegro, Francisco Milani e Bebé Silva também eram vigiados de perto.
Elenco do Grupo Opinião (RJ): Agildo Ribeiro; Hugo Carvana; Manuel Pera; Odete Lara; Osvaldo Loureiro; Telma Reston; e Virginia Valle. A peça “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, de Ferreira Gullar e Vianinha, incorporou-se ao linguajar popular.
Os cineastas Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzman, Ruy Guerra, Carlos Diegues e Glauber Rocha levaram a arte revolucionária ás telas. “Deus é o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em transe”, do genial baiano Glauber Rocha, foram divisores de águas no cinema brasileiro.
Chico Buarque, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Torquato Neto, João do Vale, Taiguara, Maranhão, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Tomzé e seu Grupo Capote (Odair Cabeça de Poeta) e Carlos Lyra, entre outros, inscreveram seus nomes na História da música popular brasileira.
1967 foi um ano marcado por filmes, livros, peças de teatro e obras essenciais nas artes plásticas. “Terra em transe”, de Glauber; “Tripicália”, de Hélio Oiticica; “O rei da vela”, de José Celso Martinez Correa; “Cem anos de solidão”, de Garcia Marquez; “Panamerica”, de Agripino de Paula; “O novo Estado industrial”, de John Kenneth Galbraith; “O desafio americano”, de Servan-Schreiber; e obras plásticas de Lígia Clark. Época da “febre do fazer”, segundo Lina Bo Bardi.
Surgia o hipismo com seus gurus, a cultura zen-oriental, descoberta pelo decadente racionalismo ocidental, as drogas, e a dimensão invisível e intuitiva tornou-se mais importante para a percepção e a compreensão das coisas.
As novas gerações têm, portanto, na incrível e poderosa arte brasileira um exemplo primoroso de como enfrentar seus inimigos nestes dias críticos e angustiantes.

Arquivo João Teixeira

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