Arte de resistência- III

A arte, mensageira do divino, é a chama que não apaga. E, dentre todas as manifestações artísticas, a Deusa Música, a mais abstrata de todas as artes, é a que mais profundamente toca nossos corações. “Absurdo, o Brasil é um absurdo, até aí tudo bem nada mal, o Brasil é um absurdo mas tem um ouvido musical que não é normal…” – Caetano definiu de forma magistral.
A música nos transmite sensações de alegria, tristeza, quietude, angústia, a sofréncia sertaneja, pena, remorsos e…revolta. A arte e seus mentores refletem a encruzilhada da Humanidade. Filha e herdeira da intuição, o farol nas trevas do Kali Yuga, a música toca fundo na memória adormecida de todos nós.
Eu, como filho das radiações de Hiroshima, dos anos 50, a época de ouro e JK no Brasil, assisti e ouvi tudo que pude da Música Popular Brasileira numa etapa decadentista, quando o samba-canção era um interminável Vale de lágrimas nos vozeiróes de Chico Alves, Mário Reis, Orlando Silva, o “cantor das multidoes”, que cantavam dores de amores semelhantes á sofréncia do sertanejo atual.
Música e futebol foram fruto de um dos mais ricos e criativos exemplos de cultura espontánea do século 20 no mundo. Símbolos do nosso talento criativo lá fora. O ufanismo patriótico de “Brasil”, samba de Benedito Lacerda e Aldo Cabral (1938): “Brasil, tens no seu berço dourado, um índio civilizado, abençoado por Deus, ó meu Brasil…”. O viés sociológico e religioso de “Ave Maria no morro”, de Herivelto Martins (1942): “Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura, lá no morro barracão é bangaló…”.
O drama urbano do sem-teto, o tema social dos seres infelizes que habitam os prédios abandonados e ficavam arrasados com as demolições, sem rumo nem lugar para dormir, presente na emocionante “Saudosa maloca”: “Saudosa maloca, maloca querida, dindindonde nois passemu dias feliz de nossas vidas…” – O eterno samba de Adoniran Barbosa (1955) que me fazia chorar quando criança.
Orlando Silva (1915/1978) morreu e deixou uma multidão de “viúvas”, João Gilberto, Caetano, Arley Pereira, Walter Silva, Alberto Helena Junior e muita gente boa. O Brasil já teve algumas das melhores orquestras do continente, formadas por músicos de primeira categoria, muitos dos quais originários do interior paulista, que animavam bailes, gravações e programas de TV. Eurico Simonetti, Rubens Perez (Pocho), Osmar Milani, Luís Arruda Paes, Zezinho, Silvio Mazzuca, Orlando Ferri, Clóvis e Eli, Gagliardi.
Pixinguinha. Dorival Caymmi. Vinícius de Moraes. Baden Powell. A Bossa Nova (1959) de João Gilberto foi um divisor de águas na MPB. O Brasil deixava de lado a sofréncia de Herivelto Martins em “Caminhemos”: ” …Não, eu não posso lembrar que te amei, não, eu preciso esquecer que sofri, faça de conta que o tempo passou e que tudo entre nós terminou, caminhemos, talvez, nos vejamos depois…” Morria-se por amor. Os desesperados tomavam “Formicida Tatu” por conta de amores desfeitos.
O golpe civil-militar (1964/85) acabou com a roda de samba. O autoritarismo silenciou o talento espontâneo da população porque todo ajuntamento era suspeito. O pau cantava frouxo. A censura moralista e ideológica dos generais e seus sócios tentou brecar – em vão – O talento da geração de compositores de chumbo: Nara Leão, Chico Buarque de Holanda, Taiguara – o mais censurado -, Maranhão, Raul Seixas, Geraldo Vandré, Paulo César Pinheiro, Maria Betânia, Sérgio Ricardo, Raul Seixas, Secos e Molhados, Edu Lobo, Clara Nunes, Odair José, João Bosco, Aldir Blanc, Elis Regina, Milton Nascimento, Gal Costa, MPB4, entre os principais.
Entre os músicos da América Latina, os mais censurados foram Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra, Victor Jara, Daniel Viglietti, Mercedes Sosa, Quilapayun, Pablo Milanes, Silvio Rodriguez, Inti – III, Joan Baez, entre os principais. Vamos continuar exportando nossa arte, esse irresistível instrumento de transformação social. Ditadura nunca mais!

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