Democracia e a saúde da mulher – II
“Ninguém será submetido á tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. O quinto artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi letra morta no Brasil militar. Não houve distinção de sexo entre as vítimas dos generais. O que variava era a forma de tortura aplicada em homens e mulheres suspeitos de subversão.
Pior: crianças, mulheres e gestantes abortavam sob suplício para obter confissões. “Além das naturais diferenças sexuais da mulher, uma eventual gravidez a torna especialmente vulnerável” – registra o livro “Brasil: Nunca Mais”, prefaciado pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns (1921- 2016). No capítulo “Mulheres torturadas”, BNM completa: “por serem do sexo masculino, os torturadores fizeram da sexualidade feminina objeto especial de suas taras”.
A produção de BNM, o livro-denúncia dos crimes cometidos nos porões do regime, envolveu um batalhão de advogados que, á sorrelfa, em várias madrugadas, correndo todos os riscos, fotocopiaram 707 processos julgados na Justiça Militar, entre abril de 1964 e março de 1979, especialmente os que alcançaram a esfera do Superior Tribunal Militar (STM). BNM, considerado “a reportagem sobre uma investigação no campo dos direitos humanos, radiografia inédita da repressão política que se abateu sobre milhares de brasileiros, também é a anatomia da resistência”. Um milhão de páginas microfilmadas em duas vias – uma foi mandada em segurança para o exterior -, em 21 capítulos, compõem um painel macabro dos horrores praticados no regime de exceção.
São os depoimentos sobre torturas (2.700 páginas datilografadas) com as denúncias firmadas em Juízo, com nomes de torturadores, de centros de sevícias, de presos políticos assassinados e “desaparecidos” e “infâmias sem conta”. Um livro perturbador. “Não é reportagem leve, agradável, tranquilizador. De uma história de horrores só poderia mesmo emergir um livro duro, forte, questionador”. O primeiro capítulo aborda aulas de tortura em presos-cobaias, na Polícia do Exército (PE), na Guanabara. “Para as forças repressivas, as razões de Estado predominavam sobre o direito á vida. Muitas mulheres que, nas prisões brasileiras, tiveram sua sexualidade conspurcada e os frutos dos ventres arrancados, certamente preferiram calar-se, para que a vergonha suportada não caísse em domínio público. Hoje, no anonimato de um passado marcante, elas guardam em sigilo os vexames e as violações sofridas. No entanto, outras optaram por denunciar na Justiça Militar o que padeceram ou tiveram seus casos relatados por maridos e companheiros”.
BNM relata os processos de meia dúzia de mulheres, de variadas profissões, professora, engenheira, bancária, estudante de Medicina, funcionária pública e revisora gráfica, que fizeram denúncias na Justiça Militar. No capítulo “Gravidez e abortos”, o livro relaciona onze vítimas em centros de sevícias (Dops e DOI-CODI) do Rio, Recife, Brasília, São Paulo e Curitiba, envolvendo prisioneiras grávidas e seus familiares. Os algozes -servidores públicos que obedeciam ordens da cadeia de comando permanecem impunes por conta de um arranjo jurídico perpetrado na lei de anistia baseado em duas palavrinhas, “crimes conexos” – praticaram toda sorte de crueldade e bestialidade em nome da Segurança Nacional.
Lavradoras, religiosas, professoras, operárias, advogadas, estudantes, entre outras profissões, figuram como vítimas de quase uma centena de modos diferentes de tortura, “mediante agressão física, pressão psicológica, e utilização dos mais variados instrumentos”, entre os hóspedes do Estado. A tecnologia da dor tupiniquim, sofisticada, amparada por médicos e psicólogos oficiais, foi importada da Inglaterra e tornou-se produto de exportação (draw back) para os países vizinhos de língua espanhola.
Se a civilização de um povo pode ser medida pela forma como as mulheres são tratadas, realmente estamos mal. A violência institucional é um dos piores aspectos do entulho autoritário. A implantação de políticas públicas de saúde ocorreu, de forma pioneira, em meados dos anos 70, e deve muito ao dinamismo e á coragem da Dra. Albertina Duarte Takiuti. “O Socorro Vermelho foi muito importante naquela época, socorrendo pessoas vitimadas pela ditadura, no Brasil e no exterior, entre os exilados” – ela reaviva a memória nacional. Os profissionais progressistas da área médica fizeram um notável trabalho clandestino de atendimento às sequelas físicas e psicológicas apresentadas pelos opositores prisioneiros e vítimas do “trabalho sujo” nos porões civis e militares.
Atualmente, em plena democracia, a violência intrafamiliar contra crianças, mulheres e adolescentes tornou-se questão de saúde pública. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 1/5 da população feminina mundial já sofreu, em algum momento de suas vidas, violência sexual ou física. Os adolescentes representam 20% da população mundial – mais de um bilhão de pessoas. No Brasil, em 2018, segundo o Observatório da Criança e do Adolescente, da Fundação Abrina, a população adolescente (0 a 19 anos) atingia 33% da população total.
A triste realidade da gravidez precoce é das mais graves na América Latina: 68 bebês nascidos de mães adolescentes para cada mil meninas (Opas, Brasil, 2018).
Em nossa reprodução da pobreza, envolvendo desestruturação familiar, álcool, drogas, violência, prostituição, assédio sexual e suicídios, as relações amorosas, passageiras e casuais, traumatiza crianças, jovens e mulheres abandonadas pelos companheiros. Tráfico. Prisões. Conflitos familiares. A equipe muldisciplinar da Dra. Albertina, dividindo seu trabalho nas categorias “vulnerabilidade”, “fatores de risco” e proteção vem obtendo expressivos resultados: redução da gravidez adolescente, das DET’s, da mortalidade materna e da violência e melhora na qualidade de vida. De 1998 a 2017, a redução da gravidez, na faixa de 10 a 19 anos, caiu pela metade. Entre as meninas de 10 a 14 anos, caiu 46,82%. Somente com liberdade e democracia poderemos reverter nosso quadro social. Ditadura, nunca mais.