Democracia e a saúde da mulher

O sumiço é pior que a morte. Os familiares e amigos da vítima são obrigados a percorrer uma “via crucis”, inútil e estressante, em hospitais, asilos e sanatórios, necrotério, delegacia de Polícia e quartéis militares, em busca dos despojos do ente querido. Em vão. Os despojos jamais serão encontrados para aplacar as almas e ter sepultura, o gesto humano e cristão, a tradição religiosa da liturgia judaico-cristá ocidental.
No ano da graça de 1975, as oposições não consentidas pelo regime militar viviviam o auge do contratempo letal. As pessoas exalavam no ar. Sumiam sem deixar rastros, lançando o entorno na mais absoluta perplexidade. Medo. Angústia. Fobias. Onde andará fulano? O que aconteceu? Alguém tem alguma notícia?

Na época dos “desaparecimentos”, o clima era o pior possível. A “abertura lenta, segura e gradual”, de Geisel, enfrentava a franca oposição dos “duros” – adeptos do ideário anticomunista do então Ministro do Exercito, Silvio Frota, cujos adeptos integram hoje o primeiro escalão do (des)governo Bolsonaro. O Brasil estava numa corda bamba que poderia resultar num banho de sangue. A mão pesada do Estado militar, azeitada por uma década de poder absoluto, fugia ao controle do poder central. A oposição consentida (MDB) obtinha sucessivas vitórias nas urnas, nas eleições de 1974, 1976 e 1978, e Geisel lançou mão do “pacote de abril” (1977), mudando as regras das eleições. Dois anos antes, o regime, então, lançou mão da tática mais cruel e fora dos parâmetros humanos contra a oposição não consentida (PCB). O partido, mesmo fragilizado, mobilizava as bases sociais e influenciava cada vez instituições como a ABI, OAB, a Imprensa.

O regime já não podia inventar “tiroteio”, “atropelamento”, “suicídio” como na jugularão da esquerda armada, pois os velhos dirigentes do PCB, contrários á aventura militarista, nem andavam armados. O partido lutava pela formação da frente política que unisse agricultor á burguesia, para alcançar a transição para o socialismo através das urnas. A luta clandestina ganhou o eufemismo “desaparecido” – que significa a perseguição, prisão, tortura e morte (esquartejamento ou incineração) em locais distantes e privados dos órgãos de segurança, como mostramos em artigo anterior “Cinzas lançadas no rio”.

Muitos membros da cúpula do PCB já estavam no exílio, no exterior, e conseguiram escapar da morte. Outros, porém, não tiveram a mesma sorte, como o coordenador da Juventude Comunista, o cearense José Montenegro de Lima. Neste clima dramático, nos idos se 1975, um grupo de mulheres de São Paulo, tal qual guerreiras de Atenas, concretizaram um sonho: construir o Programa Saúde do Adolescente. A médica Albertina Duarte Takiuti conta que, em outubro daquele ano, “em plena vigência da ditadura militar brasileira, realizou-se o primeiro Encontro da Mulher Paulista. O regime militar liquidação dissidentes de forma atroz, desumana, mas as mulheres foram á luta correndo todos os riscos. “Náo queremos para nossos filhos o mesmo destino que tivemos” – discursaram na Câmara Municipal de São Paulo. Era proibido falar em Democracia, porém, desafiando os militares, “nos reunimos para homenagear a Democracia.

“Queremos saúde da mulher em todas as fases de nossas vidas” – bradaram, corajosamente, na Carta Aberta ao Povo de São Paulo.
O assassinato, na tortura, do jornalista Wladimir Herzog, o Vlado, diretor de Telejornalismo da TV Cultura, detonou o caldeirão político. A farsa do “suicídio” montada na cela do DOI, da Rua Tutoia, em 26 de outubro de 1975, provocou a exoneração do general D’ávila Mello, fato inédito na história da República, e a mobilização da sociedade em apoio á democracia e o projeto de Geisel. A Dra. Albertina é de opinião que o sacrifício brutal de Vlado Herzog salvou muitas vidas no cárcere. Não está só. Ela também temia virar uma “desaparecida”. A luta por liberdade e democracia norteou as etapas de implantação do programa pioneiro de saúde pública no Brasil. Ao lado do professor Álvaro Bastos, do Hospital das Clínicas, da USP, que ela iniciou a então inédita “prática de escuta” para as meninas de 0 a 16 anos, no ambulatório.

A implantação do Programa Saúde do Adolescente, na prática, demorou 12 anos, e só ocorreu no Congresso da Adolescência, em 1986, que reuniu 200 profissionais da saúde. A OMS considera a gravidez na adolescência uma gestação de risco, devido ás possíveis repercussões, sob a saúde materno-fetal, além dos danos psicossociais, explica o livro “Maternidade e adolescência – histórias de adolescentes grávidas do Brasil, Portugal e Guiné (Gênio criador, editora, 2019), cujos organizadores são a dra. Albertina Duarte Takiuti, Leila Salomao de la Plata Cury Tardivo e Rui Alexandre Paquete Paixão. “No dia 7 de marco de 1987, véspera do Dia Internacional da Mulher, foi inaugurado, em rede, o primeiro serviço público para adolescentes, meninas e meninos, no Brasil. Embora esse tipo de serviço já existisse em algumas faculdades, foi o primeiro programa dessa natureza no INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social).

“No mundo, 20 mil adolescentes com menos de 18 anos, dão á luz todos os dias, em países em desenvolvimento. Das 7,3 milhões de meninas com menos de 18 anos que dão á luz a cada ano, em países em desenvolvimento, 2 milhões tem menos de 15 anos”. “Era a primeira ve, que se realizava uma prática de equipe multiprofissional”, recorda a dra. Albertina. “Em 1992, apenas 5 anos depois de implantado, atingimos a marca de 400 mil atendimentos”.

“O percentual de mães adolescentes tem aumentado consideravelmente, nas classes mais baixas, em famílias com renda de até 1 salário mínimo”. “Em 8 de março de 1991 foi assinada a Resolução SS-69, aprovando as diretrizes do Programa de Saúde do Adolescente em todo Estado de São Paulo. No dia 18 de novembro desse mesmo ano, o deputado estadual Arnaldo Jardim (Cidadania) apresentou o Projeto de Lei 679 que se transformou em Lei 11.976, em 25 de agosto de 2005, 14 anos depois. No primeiro artigo do Projeto estava definido: “Fica criado o Programa de Saúde do Adolescente na rede pública do Estado de São Paulo”. “(….) A gravidez na decência afeta a escolarização das adolescentes mães pertencentes á classe social mais baixa. O nível de escolaridade de adolescentes mães é menor, se comparado as adolescentes que não possuem filhos, tendo em sua maioria o ensino fundamental incompleto, o que afetará diretamente a colocação no .mercado de trabalho”.

“A maternidade aparece como única perspectiva de vida para essas jovens de classes populares, onde o papel social mais importante por elas desempenhado é o de ser mãe” (Doering). Em 2019, o Programa estava em 29 casas, que vem contribuindo para que os municípios se interessem pouco a pouco por eles”. Também influência e contribui com as agendas de outros programas em nível nacional. A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e outra questão de saúde público que trataremos em outro artigo. Mirem-se no exemplo daquelas mulheres – não de Atenas – e sim lutadoras sociais da área da saúde. Somente com liberdade e debate crítico podemos avançar nas causas sociais. Ditadura, nunca mais.

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