Luzes em tempos sombrios
“O importante é que nossa emoção sobreviva”. O que há de novo sob o sol? Nada do que já tenha ocorrido no passado sucede nos dias atuais. Claro, os fenômenos vão se repetindo com novas facetas, outras características e roupagens, novos significados, mas tudo não deixa de ser o que já foi.
Além da revolução científica e tecnológica – não ideológica -, é óbvio que a Medicina, por exemplo, avançou nos últimos cinco anos mais que nos cinco mil anos precedentes. Somos inigualáveis no domínio da matéria, mas nem tanto no campo emocional e espiritual. Desde os tempos das cavernas, a História da Humanidade tem sido uma sucessão de guerras entre os povos, catástrofes, desastres naturais, epidemias, escravidão, Inquisição, ditaduras, morticínios e toda sorte de desgraças.
Nestes tempos sombrios, de obscurantismo e negacionismo, fui buscar luzes na filosofia de Platão (427/374 a.C). O filósofo grego via o mundo real fora da caverna em que os prisioneiros se conformavam com a escuridão e temiam a verdade da luz. Os textos da Antiguidade grega permanecem atuais nestes tempos pós-verdadeiros. Houve época em que obras imortais (“Mil e uma noites”, “A divina comédia”, “D. Quixote”) eram recolhidas pelos bombeiros e queimadas em fogueiras montadas em praças públicas. As “Mil e uma noites” não acabam nunca e seu tempo se desenrola infinitamente. O tema dos livros de ficção proibidos e incinerados pelo regime totalitário inspiraram o americano Ray Bradbury, em 1953, a escrever “Farenhait 451”, adaptado para o cinema pelo francês François Trauffaut. As pessoas passaram a engolir suas obras favoritas criando a terra dos homens-livros.
O Brasil, sob o vírus invisível da pandemia e o terror negacionista do poder, também acende fogueiras monumentais que atinge a Educação, a Saúde, as artes e os espetáculos, e a Cultura de forma geral. O autoritarismo tecnocrata – milhares de militares despreparados ocupam postos-chave no Estado em lugar de técnicos civis especializados – vem produzindo um Himalaia de cadáveres. Tentam apagar dois mil anos de civilização num ataque insano de cunho ideológico contra o livre pensar, a Cultura, arte, ciência, educação, Imprensa, Universidades, fundações, livros, livreiros, professores, filósofos e todo tipo de criador de caráter subjetivo e transcendental.
Eis que quando se chega ao ponto de não voltar atrás, só o destino sabe a tarefa que nos traz. Deus nos livre de ter medo agora. A prudência e o ceticismo nos ensinam a duvidar. O grito na escuridão é ancestral. Em 1975, o Brasil ardia em desesperança. A censura proibia qualquer forma aberta de manifestação, e a música tornou-se o escoamento natural dos sentimentos da rapaziada universitária da época. A música-espetáculo “Mordaça”, composição de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, na voz de Márcia, lançada no Teatro Tuca, lançou o refrão que simbolizou o espírito de abraços sufocados: “o importante é que nossa emoção sobreviva”. A letra: “Tudo o que mais nos uniu separou/Tudo o que tudo exigiu renegou/da mesma forma que quis recusou/O que torna essa luta impossível e passiva/O mesmo alento que nos conduziu desandou/Tudo o que se assumiu desandou/O que faz invencível a ação negativa”.
No início do AI-5 (Dezembro de 1968), a música ainda tinha conotação revolucionária, de esperança, seja nos versos marciais de Vandré ou na contestação estética do Tropicalismo. Em 1975, só desalento. “É provável que o tempo faça a ilusão recuar/pois Tudo é instável e irregular/e de repente o furor volta/O interior todo se revolta/e faz nossa força se agigantar/mas só se a vida fluir sem se opor/mas só se o tempo seguir sem se impor/mas só se for seja lá como for/O importante é que nossa emoção sobreviva”.
A emoção e a indignação são sentimentos de nossa dimensão humana contra o “profundamente seco e frio estão os tempos” – e as pessoas -, na comovente e corajosa percepção de Tatiane Sperti, em “As ruas e o tempo frio”, publicado neste Contratempo. Como em “Alphaville”, filme clássico de ficção (?) científica, em que todos são controlados por um supercomputador (Alpha 60), reina a falta de sentimentos. O “mal líquido”, de salada metafísica, naturalizou-se, neste palco de aberrações e insanidades, desequilíbrios, mentiras e genocídios – ante a indiferença geral. A dessensibilização coletiva, “O pó denso da desumanização, de maldade e estupidez”, gera a adiaforizacao (indiferença) diante da dor do semelhante, o grito de “Socorro, não estou sentindo nada”, a vacuidade que preenche nossa sociedade de castas.
O ouro abre as portas do Céu. Liberdade é navegar num oceano de detritos. Nade ou afunde. Compro, logo existo. Faça você mesmo. Sorria, você está sendo filmado. O grande jornalista e escritor (“Nossos índios, nossos mortos”), Edilson Martins, corrobora minhas palavras: “O homem foi, tem sido, e assim será, incapaz de ver além do próprio umbigo. Nada além do restrito círculo de família, religião ou da política. Competitivo, narciso, egoísta, sedento de poder, em suas diferentes formas. Principalmente quando tudo isso nega”. “E a felicidade amordaça essa dor secular/pois Tudo no fundo e tão singular/É resistir ao inexorável/O coração fica insuperável/e pode em vida imortalizar/O importante é que nossa emoção sobreviva”. As novas gerações têm na música popular uma fonte inesgotável de inspiração e lucidez para iluminar estes tempos sombrios.