Requiém de anjos exterminados
João Teixeira*
Os enigmas do passado desafiam nosso entendimento presente.
A memória é sempre seletiva, conceitua Paul Ricoeur, pouca gente lembra dos pesadelos.
Em sua existência, o Homem vive uma incessante dialética entre a recordação e o esquecimento.
Cada indivíduo participa, simultaneamente, de vários campos de memória, conforme a perspectiva em que se coloca, e sua retrospecçáo.
Em “A memória, a História e o esquecimento”, Ricoeur trata do mito e da mimesis (imitaçáo).
O que é o esquecimento -ponto sensível da Filosofia – , o “apagar”, a desmemória?
Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Nietzsche, são muitas as contribuições dos pensadores clássicos sobre memória, esquecimento e perdão.
Os fatos que se sucederam estão nos arquivos dos jornais, continuam se sucedendo, e, infelizmente, dificilmente deixarão de se repetir.
A princípio, afiguram-se como um fatalismo religioso manipulador e execrável. Parecem mas não são.
O despreparo e a alienação não combinam com a militância política responsável e consequente.
A criatura empenhada em mudar o mundo, idealista, utópica, sonhadora, deve primeiro tratar de mudar a si mesma para depois cuidar do resto.
Depois, terá chances de transformar o meio que o cerca. O contrário será dar murro em ponta de faca.
É o que na prática nos ensina os tristes episódios dos “arrependidos”, os que não foram porque nunca chegaram a partir, envolvidos na resistência armada contra o regime civil-militar (1964/85).
As organizações de “novos comunistas”, dissidentes do pacifismo do PCB, surgidos após o golpe militar de 1964, atuaram na base do idealismo e do voluntarismo heroico da juventude secundarista e universitária egressa do movimento estudantil.
Os estudantes de classe média (de 18 a 25 anos, em média) sacrificaram-se sob a bandeira do guevarismo (foco) em nome da causa revolucionária como “vanguarda do proletariado”.
Na luta clandestina, perseguidos, presos e torturados pelos órgãos de segurança – muitos com a ajuda das próprias famílias -, um sem-número de jovens pagaram um preço caro pela aventura: perderam a própria alma, trocando o ideal revolucionário pela vergonhosa retratação pública, o preço da liberdade.
O mea culpa dos militantes esquerdistas “arrependidos”, verdadeiros “garotos-propaganda” do regime, era um espetáculo teatral montado pelos militares nos bastidores das emissoras de televisão.
As autoridades escolhiam um programa de baixa audiência, que não competia com as novelas da TV Globo, nos primórdios do império global de Roberto Marinho.
Um antigo produtor da TV Gazeta, Canal 11, o jornalista Marcos Silva, militante da Ação Popular (AP) lembrava-se de um programa chamado A Grande Reportagem, apresentado ás quartas-feiras, ás 20h40.
Os estúdios ficavam na sede da Fundação Cásper Líbero, na Avenida Paulista 900.
O programa prestava-se a esse tipo de encenação. Entrevistando esquerdistas arrependidos, colaboraram com os órgãos de segurança.
Na TV em preto-e-branco, pré-video tape, os programas e comerciais eram gravados ao vivo.
A TV Gazeta, pertencente á Fundação Cásper Líbero, tinha apresentadores como Clarice Amaral e Gofredo da Silva Telles. Eram tempos do Onze no Onze, programa esportivo comandado por José Italiano.
“A gente passava o maior constrangimento nos bastidores. Primeiro, a polícia cercava o quadrilátero onde ficava a emissora, entre a Avenida Paulista e as alamedas Joaquim Eugênio de Lima e São Carlos do Pinhal”.
Armados, os policiais vigiavam tudo, numa exibição exagerada do poder militar.
“Chegaram a proibir a entrada dos produtores do programa. Reclamei com eles, disse que se a gente não entrasse não teria programa. Eles me deixaram entrar”.
“O estúdio era preparado com uma tapadeira, um conglomerado de madeira que sustentava o tablado e a parede falsa onde ficava o entrevistado”.
“Atrás, nas coxias, ficava o preso algemado sob a mira de quatro metralhadoras, até a hora do programa começar e ele entrar em cena”.
“Então, os policiais tiravam-lhe as algemas e o programa começava com vigilância redobrada. Um policial ficava atrás da tapadeira, dois nas laterais, e outro perto do cámera. Todos com metralhadoras apontadas para o entrevistado”.
“Se o entrevistado desse um passo em falso, acho que ele seria fuzilado ali mesmo. O tom das perguntas não mudava muito, era sempre naquela base, porque ele havia entrado naquela vida? Achava certo o que tinha feito? Ao que o retratado desculpava-se publicamente pela militância”.
Nestas circunstâncias, o Brasil era um País que ia para a frente e a juventude era aconselhada a seguir o caminho da ordem, do estudo, do trabalho.
Como nas melhores encenações, tudo era previamente ensaiado, de forma rápida e convincente.
O professor Antônio Delfim Neto, o ministro do “milagre economico” acompanhava tudo pessoalmente.
Findo o programa, o apresentador, policiais e os presos algemados comemoravam com um coquetel de confraternização.
Os militares dominavam a cena. A polícia uma vez deixou um carro-forte assaltado embaixo do prédio da Av. Paulista mas proibiram que fosse mostrado.
Nas noites de domingo, o Festival de Cinema exibia filmes sem o certificado da Censura Federal, “ás vezes dava o maior bode”.
A liberdade custava caro.
Palavras-chave: golpe militar de 1964; jornalistas perseguidos; Imprensa censurada.
*João Teixeira, jornalista e escritor, é membro do Conselho Editorial do Jornal Contratempo