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Um caso de censura

Um caso de censura

Anos 70. O censor examina as letras de músicas inscritas no Festival da Canção de Cachoeiro de Itapemirim.
De vez em quando olha sério para mim, desconfiado, e examina outra letra.
Atrás de sua mesa uma pilha de obras: Livro de Cabeceira do Homem Brasileiro. Ele percebeu a minha curiosidade e apenas disse: “pura pornografia. Apreendemos tudo aqui em Vitória. Imagina que tem até artigo sobre sexo oral.”
Fiquei quieto enquanto ele analisava cada letra. Nada de provocar onça com vara curta.
O silêncio foi quebrado, de repente, com um “arram!”. O homem, a gritar, me olha com ar inquisitório “Pornografia! pornografia. Vocês comunistas acham que me enganam?”
Ao final do desabafo já estava de pé, a balançar a a folha de papel em minha cara.
Aquele “vocês comunistas” realmente me assustou e acendeu a minha atenção. Era tempo de AI-5 e eu não tinha a menor intenção de ser enjaulado por um censor apenas por prestar um favor à Casa do Estudante.
Estava ali na Polícia Federal com as letras das músicas a pedido do compositor Sérgio Sampaio, quando soube que eu iria a Vitória tirar um passaporte.
Por azar a tal música pornográfica, na visão do censor, era de autoria do Sérgio Sampaio. Ele morava na Rua Moreira e enaltecia
“As Ruas velhas
Que vão dar no pátio do Liceu”
O homem, a balançar a composição freneticamente na minha cara, estava possesso e berrava: “Esta letra é um insulto à família brasileira.”
Eu lera a letra na viagem de ônibus, e nada notara de pornográfico e muito menos algum insulto às famílias cachoeirenses ou brasileiras.
– Onde o senhor notou a pornografia? perguntei timidamente, já temendo que meu passaporte fosse negado.
E ele, ainda eufórico com a sua perspicácia: “Vocês dividiram de propósito a frase em duas linhas apenas para me enganar, mas não nasci ontem”.
E completou:
– Acham que não notei? Está claro que vocês insinuam que em Cachoeiro há velhas que vão dar no pátio do Liceu. Esta ‘rua’ da letra está aí apenas para disfarçar.
A esta altura na avaliação do censor eu já me tornara co-autor da letra que claramente, em sua perspicaz avaliação, subvertia os valores mais caros da Revolução e da família brasileira e por isso deveria ser sumariamente banida do festival.
Aliás, até o tal festival deveria ser proibido, berrava.
Antes que carimbasse o veto perguntei se ele aprovaria uma pequena mudança. A letra ficaria assim:
“As ruas velhas,
ruas que vão dar no pátio do Liceu.”
Para minha surpresa, ele aprovou.
– Ah! Assim pode. Elimina a frase pornográfica.
E riscou, com a sua caneta Bic vermelha, por segurança, o termo velhas.
Entreguei ao Sampaio a sua canção devidamente rabiscada pelo censor, mas ele a interpretou com a letra original, com a pornografia que ninguém mais percebeu.
E ninguém foi preso.

 

João Teixeira e colaboração do jornalista capixaba Sérgio Garschagen, de Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo.

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