A armadilha do discurso moral nas eleições
Os resultados das eleições para o Legislativo (deputados e senadores) deste ano mostram o fortalecimento de grupos conservadores, de extrema-direita. Já não estamos falando da direita tradicional, mais interessada em garantir os privilégios dos grupos que representam. São atores políticos do fascismo bolsonarista, com discursos e atuação que seguem de perto os do presidente que tenta se reeleger.
A grande bancada conservadora no parlamento e a diferença pequena no resultado da disputa presidencial, contrariando a expectativa de vitória de Lula já no primeiro turno, demonstram que a força do bolsofascismo ainda é grande e continua a usar com maestria as estratégias que garantiram a vitória em 2018.
Temos o uso massivo de canais de mensagens como Whatsapp e Telegram, além de plataformas ultrafluidas, como Tik Tok e Kwai. Nestas o conteúdo é veiculado de forma rápida, direta e sem qualquer restrição. Parte da fórmula é tão antiga quanto a publicidade; o que se tem de novo é o meio.
O ponto sobre o qual penso em focar nesse momento é no discurso moral. Os campeões de votos da extrema-direita privilegiaram pautas morais, particularmente o aborto. Afirmava-se que votar na esquerda era aprová-lo. Inclusive é preciso notar a captura da palavra “genocida”: amplamente utilizada para denominar Bolsonaro devido ao seu completo descaso com a pandemia de covid-19 e as 700 mil mortes oficiais, foi cooptada para denominar os candidatos de esquerda, que apoiariam o aborto, não somente irrestrito, mas incentivado.
De pouca serventia tem apelar para o bem-senso; menos ainda, para o debate científico em torno da interrupção da gravidez. As pautas morais apelam para a visão de mundo de indivíduos e grupos, ou seja, para os próprios fundamentos da identidade que as pessoas constroem para si. Ameaçar um valor moral central, como no caso do aborto, é ameaçar a identidade de alguém, e faz pouca diferença se a ameaça é irreal, pois diante de um “perigo” de tal tamanho, nossas “reações de alerta” são ativadas e somos empurrados a responder a tudo rapidamente e de forma intensa (notar que a propaganda bolsofascista investe pesado nas 48 horas que antecedem a eleição).
Aquele que, supostamente, ataca um valor tão importante para a estrutura de um indivíduo é colocado automaticamente no lugar de inimigo. Não de adversário político, mas de um ser perigoso que ameaça a integridade psíquica. Portanto, desvelar toda a armadilha ideológica em torno da questão do aborto, ou de qualquer outra pauta moral, não passa apenas por construir uma argumentação bem fundamentada.
A título de hipótese, podemos afirmar que a marquetagem bolsofascista sabe insuflar, com muita eficiência, o pânico moral na população brasileira. Esse fenômeno ocorre em populações que estejam passando por situações de calamidade social, como a que vivemos agora. O que as forças conservadoras fazem é canalizar o medo e o mal-estar com as condições concretas de vida, jogando a culpa em seus adversários políticos, valendo-se de uma imagem facilmente reconhecível e profundamente enraizada no imaginário – aqui, o aborto.
Essas táticas são tão potentes que quase eclipsam totalmente a estratégia da esquerda, de insistir no tema da fome e do desemprego. Furar essa bolha envolve recursos que não estão ao alcance dos indivíduos comuns (como uma poderosa máquina de propaganda); a esperança está em se mudar o tom. Lembrar que a esquerda luta pela igualdade, por um ideal de sociedade que atenda às necessidades de todos, talvez não seja suficiente. Precisamos deixar as pessoas em dúvida se realmente a esquerda é a ameaça que dizem ser. O tom agressivo de parte da militância contribui para o medo. O caminho pode não ser o confronto, mas o convite para que as pessoas vivam a experiência de sentir esperança e de acreditar em um mundo melhor, com coerência e tenacidade.
Luiz Bosco Sardinha Machado Júnior
psicólogo (CRP 06/96910), palestrante e professor universitário