Um tuga em Terras de Tupiniquins

Começo o meu texto escrevendo hoje com um enorme agradecimento pelas mensagens carinhosas e de incentivo que recebi quando saiu a minha Coluna no nosso Jornal. Agradeço ao Contratempo pela oportunidade, agradeço à minha editora, a jornalista e amiga Juliana Neves, que faz o favor de corrigir as palavras para o brasileiro, porque eu ainda falo muito e escrevo em português de Portugal.

 

A minha decisão foi difícil porque o meu pai tinha o dom da oratória e da escrita, me sinto uma formiga perto do nome que carrego, mas as mensagens me mostraram que eu consigo e posso continuar. Todos os familiares e amigos, inclusive além mar, me deram um feedback positivo. Agora os dois países acompanham a minha coluna.

 

Tenho de retificar uma situação, que só a minha irmã, Ana Isabel, que reside a 9.589 Km de distância, na Inglaterra, conseguiu observar. Eu desembarquei no Brasil em 3 de novembro de 2013 e não em 3 de dezembro de 2013. A todos e ao Jornal as minhas desculpas. Poderia não ter falado nada, mas acontece que no espaço de 30 dias, atualmente, poderia comprar muitas latas de leite condensado, muitas caixas de chicletes.

 

Hoje pensei contar-vos algumas aventuras caricatas que aconteceram nestes sete anos, fruto da diferença cultural e linguística. As peripécias foram muitas, mas pensei em enumerar algumas das mais engraçadas. Digo engraçadas porque todas elas surgiram da manifesta diferença entre os nossos países.

 

A primeira situação, para mim das piores, foi na virada do ano de 2013. Fomos comemorar em casa de uns amigos, fazia um mês que vagueava por Ourinhos. Tudo correu muito bem, até que de manhã acordei e fui escovar os dentes, no banheiro estava um papel escrito em letras garrafais “Favor não jogar papel higiênico no vaso” (para os meus conterrâneos vaso é sanita). Olhei para o papel e pensei com os meus botões, que gente doida os brazucas, jogar papel no vaso, vaso para nós portugueses é o local onde plantamos as flores. Cheguei perto da Eryka e contei do papel na parede com a informação. Ela olhou para mim e deu risada. Perguntou-me se eu tinha ido no banheiro durante a noite, falei que sim. Ela falou que eu era o responsável por aquele aviso na parede, já que havia entupido o vaso sanitário. Aqui o esgoto não é igual ao nosso em Portugal, fiz as minhas necessidades e joguei no vaso, não podemos, temos que jogar num caixote do lado do vaso. Imaginam como ficou o banheiro do casal. Me senti muito envergonhado, mas o mal já estava feito, não dava para consertar.

 

Nessa mesma altura conheci uma grande amiga da Eryka, a Aline, e estávamos os dois conversando sozinhos, nos conhecendo, quando eu tenho a infeliz ideia de lhe perguntar o que ela fazia na vida. Ela me contou que fazia bicos. Eu rapidamente saí de perto dela, não por preconceito, mas assustado. Cheguei perto da Eryka e dei os parabéns pela Aline ser uma pessoa tão frontal e tão sincera. Ao questionar-me do porquê de tais afirmações, eu contei o que a Aline havia dito. Ela começa a rir muito e depois de uns 30 segundos me diz que aqui bico é fazer trabalho que aparece, que não tem registro em carteira de trabalho. Em Portugal, na nossa gíria, bico é felácio (ato sexual oral). Caímos na risada e fiquei envergonhado.

Das primeiras vezes que fui a um bar, a moça me pergunta se queria copo sujo, como todo mundo estava pedindo, resolvi pedir também. Assim que a moça saiu da mesa, olhei para a Eryka, indignado e perguntei se no Brasil não tinham máquinas de lavar louça. Todo mundo riu, não me explicaram e esperaram os copos chegar na mesa. Copo sujo é um copo em que leva em volta suco de limão e sal para tomar cerveja, hoje sou fã.

 

Em minha chegada em Ourinhos, abri o Millennium Bar e quando estava tratando da contratação de funcionários, na entrevista chamei a moça de rapariga, ela ficou extremamente ofendida e eu sem entender o que estava acontecendo chamei a Eryka, a minha salvadora em todas as situações constrangedoras, que me explicou que rapariga era um nome feio no Brasil. Para nós, portugueses, é moça, menina. Claro que só a Eryka conseguiu sanar o diferendo.

 

Quem me conhece sabe que sempre gostei de futebol e futsal. Quando cheguei a Ourinhos comecei jogando no gol. Resolvi pendurar as chuteiras e começar a vida de técnico, tudo amador, sem ganhar nada com isso, somente amizade e companheirismo de muita gente que conheci neste meio e que me ajudaram imensamente na adaptação. Hoje treino o time de campo do Barra Funda, time com muita tradição em Ourinhos e que estamos tentando reerguer. Treino também o time, desde 2018, dos meus dois meninos, o Matheus Costa e o Douglas Bueno, cujo nome do time foi uma homenagem à minha pessoa. NGDP (Ninguém Gosta Do Português). Num dos nossos amistosos no Racanello, escola onde treinamos toda semana, quando o meu time está a jogar bem, falo tá bom (está bom). O time contrário, não conhecendo o meu sotaque, pegou a bola e começou discutindo, por que razão “acabou” se nem cinco minutos tinha de jogo. Os meus jogadores tiveram que explicar e o jogo continuou.

 

Um dos últimos percalços que tive foi na escola onde sou inspetor de alunos. Em Portugal, usamos muito o termo “porra”, que significa para nós caramba. Tinha o hábito de usar esse termo com os alunos, do gênero “não façam isso porra”, a minha colega e amiga de coração, a Juliana, esteve cinco minutos literalmente falando que eu não podia usar esse termo, e eu insistindo por que razão não podia usar o termo. Quando entendemos que em Portugal não era asneira, e no Brasil sim, caímos na risada. Mas o nosso diálogo estava difícil porque não estávamos entendendo.

 

Relatei-vos ao pormenor alguns dos “incidentes”. Chamo incidentes, mas sanáveis, porque acredito que se não existisse a diferença cultural e linguística hoje não estaria a reportá-los.

 

Claro que nem tudo foram bonitos episódios, chorei muitas noites, passei por grandes adversidades, sem emprego, correndo mal o projeto do bar, tudo corria mal. Tive sorte de ter a Eryka do meu lado, porque três anos sem emprego, sem ninguém me contratar, sem ter dinheiro para ir em Portugal ver o meu filho, o Gugas, os meus irmãos, a minha mãe, a minha família, dói todos os dias no meu peito. Até o meu passaporte caducou.

 

Hoje estou melhor, converso todos os dias com o meu filhão, que tem 21 anos já, aprendi que na vida não importa os bens materiais e sim quem somos, o que somos, o que fazemos. Graças a Deus sou servidor público, prestei concurso e passei, não precisei pedir nada a ninguém.

 

Ocupei a minha vida de um modo que hoje me assusto como consigo ter tempo para tudo, mas quando fazemos de coração tudo fica mais leve, mais fácil. Estou fazendo administração na Estácio, treino dois times, um de campo e outro de quadra, sou colunista do Jornal, sou da comissão de inspetores da Prefeitura de Ourinhos. Me sinto totalmente adaptado e sinto que fui recebido de braços abertos pela cidade de Ourinhos.

 

Deixo-vos com algumas considerações porque sou sensível e gosto de me envolver. Não sejam negacionistas, não aglomerem, esperem a vacina. No meu país, apesar de todas as diferenças que vos tenho falado, também tem muitos negacionistas, as pessoas acham que é uma gripezinha ainda. Não desejo mal a ninguém, mas penso que as pessoas só acreditam quando bate na porta delas, ao seu redor. Eu cumpro o isolamento, só saio para ir trabalhar. Os servidores da educação estiveram na linha da frente durante a pandemia, entregando kits alimentação e atividades escolares, não nos recusamos, estivemos lá para suprir as necessidades das nossas crianças e suas famílias. Inclusive, me voluntariei para carregar e entregar os kits nas escolas estaduais, mesmo que fosse um trabalho árduo, porque pensei no próximo, tive empatia (foi esta a educação dos meus pais e não mudo os meus valores) para com aqueles que mais precisavam.

 

Outra consideração que quero deixar é para as pessoas deixarem de chamar funcionário público de parasita, de vagabundo. Em Ourinhos, faz quatro anos que os servidores não têm aumento e vocês veem os aumentos de mercado, de combustível, da inflação. O nosso Prefeito, fruto do estado de calamidade, em que o Congresso, para aprovar o socorro financeiro, proibiu reajustes e progressão até dezembro de 2021, resolveu seguir essa via.

 

Mas acontece que muitos municípios da região pagaram, contrariando essa mesma proibição. O nosso Prefeito entendeu retirar o reajuste de 3,98% e aumentou a Previdência de 11% para 14%, só funciona para o lado dos mais fracos. Aliás, não entendo muito bem de leis por aqui, vejamos,  já que não permitiu o reajuste de 3,98%, já sei vão que irão me dizer que foi o Ministério Público ou o Capitão das Medalhas quem lutou contra os servidores, mas a Lei de Calamidade Pública permite cargos de comissão e funções gratificadas. Vá entender, mas como aprendi com o meu amigo Lucas Fuzzo, pau que bate em Chico, não bate em Francisco. Valorização não é pagar antes do dia estipulado na Lei, não mesmo.

Pedro Saldida

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