Por que muitos ignoram a seriedade da pandemia?

A pandemia no Brasil atinge a marca de 50 mil mortes e parte significativa de nós, brasileiros, age como se nada de muito relevante estivesse acontecendo. O afastamento social já é visto como tema desagradável, ou ainda, um comportamento muito complicado que só uma parcela pequena da população insiste em manter. Optamos por simplesmente ignorar a gravidade do momento em que atravessamos e nos apegarmos à dupla máscara e álcool em gel, como amuletos milagrosos que nem precisamos usar adequadamente, bastando tê-los por perto.

Parte disso se explica pela bem conhecida atitude de que “só acontece aos outros, nunca comigo”, que justifica a falta de cuidados na constatação de que “se até agora não peguei, é porque a situação não é tão séria”. Contudo, é preciso pensarmos sobre outros fatores envolvidos, que dizem respeito à nossa formação cultural e ao momento político em que vivemos.

Alguns elementos para compreendermos o que acontece:

– Em março e começo de abril, aproximadamente, a Europa enfrentava a fase mais difícil da pandemia. Foi o período de maior adesão e preocupação por aqui. As imagens da Praça do Vaticano vazia, de Veneza com as águas limpas, das pessoas nas sacadas cantando e aplaudindo, causavam forte comoção. Nosso imaginário, lapidado pela colonização europeia e pelas imagens vibrantes do cinema de Hollywood, encantou-se com o noticiário tomado pela preocupação com os países que nos ensinaram a estimar mais do que ao nosso. Com a redução da pandemia por lá, não recebemos mais aquelas imagens comoventes e não vimos motivos para nos preocuparmos com o que acontece aqui.

A coletividade brasileira é fortemente conduzida por aquilo que os veículos de comunicação em massa apresentam, principalmente quando se trata de coisas novas, com relação as quais não temos hábitos enraizados ainda. A imprensa insiste na importância do isolamento social, mas já não somos expostos a imagens de europeus comovidos e paisagens desabitadas. Logo, a necessidade de incorporarmos um hábito tão diferente ao nosso rol de comportamentos perde força, pois já não tem rosto, não conta com a sedução das imagens, tornando-se um conceito do qual apenas se fala. Sem o colorido das imagens bem trabalhadas das agências de notícias estrangeiras, pensar sobre isolamento se torna algo que exige mais esforço e vai ficando distante da nossa rotina sempre tão movimentada e alegre.

– O senso comum, essa forma de pensar o mundo que usamos no dia a dia, não é o espaço para a elaboração de conceitos, nem de hipóteses científicas. Depende da instrução escolar e da divulgação filosófica e científica para se alimentar de informações construtivas e possuir parâmetros éticos que norteiem atitudes e comportamentos. A partir do momento em que os conhecimentos mais conceituais são absorvidos pelo conhecimento do cotidiano, perde-se sua origem e o percurso de sua demonstração e teorização. Ganham a superficialidade de ‘palavras de ordem’ repetidas e utilizadas irrefletidamente. Quando grupos conservadores estrategicamente atacam esses conceitos, fazem-no cientes de quão raso é o seu uso. O ‘cidadão comum’ se vê sem o repertório mínimo para defender ideias tornadas banais e pode colocá-las sob dúvida.

Podemos tomar como exemplo uma das inúmeras notícias falsas disseminadas durante esses meses de pandemia. Circulou o boato de que as máscaras utilizadas, caseiras ou não, retém gás carbônico e isso faria a imunidade cair. Os termos ‘gás carbônico’ e ‘imunidade’ dão ar de cientificidade à afirmação, sem correrem o risco de serem tão estranhos a ponto de não serem identificados, o que não serviria ao propósito das fake news. Mesmo sendo palavras familiares, o conceito por trás delas se perdeu no uso cotidiano. Quando nos vemos diante de uma pseudoinformação que questiona essas informações consolidadas, constatamos nosso desconhecimento e consideramos esse questionamento crível. Isso é suficiente para quem já está propenso a desacreditar de informações que, de alguma forma, vão contra suas convicções ou supostamente representem interesses de grupos com os quais não concordem.

– A extrema-direita que governa o País conhece muito bem esses e outros aspectos do nosso imaginário. Chegou ao poder se valendo deles largamente, inclusive com a disseminação de notícias falsas descaradas. Com um marketing agressivo, sabe renovar constantemente o repertório de memes, vídeos e pseudonotícias a serem espalhadas pelos grupos de WhatsApp e demais redes sociais. São conteúdos que atacam pontos sensíveis dos adversários políticos, ou da bola da vez que é a prevenção à pandemia. Já tivemos como alvo a mencionada máscara, a China, a OMS, os governadores, a Globo, a divulgação dos números, entre tantos outros. Há um esforço orquestrado para colar a imagem de “esquerdismo” à prevenção contra o Covid-19. Para compreendermos a quem interessa sustentar a pandemia, precisaríamos entrar em aspectos mais sombrios do capitalismo do século XXI, marcado pela política de lucrar com a precarização da vida e com a morte.

Do Presidente da República a anônimos de WhatsApp, uma multidão de vozes se esmerou em argumentar que era preciso retomar o comércio para a economia não quebrar. Esse setor é responsável por parte significativa dos empregos e admite pessoas de escolaridade média. O governo e aqueles que o financiam não estão se importando com a possibilidade, que já se concretiza, de milhares de mortes de pessoas de renda média baixa ou baixa. São consideradas descartáveis, facilmente substituíveis, pois o número de pessoas desempregadas é alto. É mais importante manter uma suposta produtividade a qualquer custo. Tudo que vá contra esse mandamento é uma “heresia de esquerda”.

– Toda essa produtividade que nos é exigida, ainda que de diferentes formas para diferentes setores, encontra justificativa no consumo. Comprar é o que dá sentido ao esforço (e agora, risco) de nos submetermos ao trabalho. É a ação que nos leva a um paraíso prometido, expresso em um ritual que a maioria de nós pratica com prazer. Nós nos vimos desprovidos da ida ao “centro” e ao shopping, onde admiramos objetos e serviços que nos prometem a felicidade instantânea.

Com a reabertura do comércio, multidões foram se vingar da restrição à sua “necessidade” de consumir. Não importa a pandemia, as mortes, a crise econômica. Era imperativo saciar o desejo de ter algo, mesmo que fosse inútil, ou de uso momentâneo. O adestramento que a propaganda faz em nós é extremamente eficaz e hoje somos cultuadores tão fiéis do consumo, que estamos dispostos a sacrificar vidas em seu altar.

É sempre difícil falarmos de nós mesmos, sem cairmos numa posição ingênua de falarmos dos brasileiros de forma abstrata, como uma entidade autônoma que está em todo lugar, mas com a qual ninguém se identifica. Precisamos fazer esse difícil esforço de pensarmos em nós mesmos, reconhecendo nosso papel na situação instaurada. Uma análise breve como esta visa alertar para tudo o que está acontecendo e pretende nos ajudar a buscarmos saídas para uma crise humanitária que pode se ampliar e alcançar dimensões trágicas como nunca vivemos. Basicamente, é urgente abandonarmos o consumismo e removermos do poder o grupo que lá está. A médio e longo prazo, temos um complexo desafio político, educacional e cultural, cuja resolução não podemos mais adiar.

 

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