×

Projeto de Lei N°529/2020: a desconstrução do Estado

Projeto de Lei N°529/2020: a desconstrução do Estado

Projeto de Lei nº 529/2020, falácias e a desconstrução do Estado: um olhar a partir da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP)

Projeto de Lei nº 529/2020: a desconstrução do Estado
Desde sua publicação, em 13/08/2020, o Projeto de Lei nº 529/2020, apresentado pelo Governo do Estado de São Paulo, tem sido objeto de intensos debates e manifestações públicas, ora favoráveis, ora desfavoráveis, mas sempre de inegável impacto no mundo político e jurídico.
O referido Projeto de Lei (PL) propõe, em nome de uma genérica necessidade de “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas” a extinção de dez empresas, autarquias e fundações públicas, além de confisco de recursos das universidades paulistas e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), aumento da alíquota de contribuição do trabalhador ao Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE), dentre outras medidas. Tal necessidade está justificada em supostos “estudos realizados pela Secretaria de Projetos, Orçamento e Gestão”, estudos estes não tornados públicos até o momento.
Alega-se que o PL tem “por finalidade viabilizar uma série de medidas visando dotar o Estado de meios de enfrentamento da grave situação fiscal que ora vivenciamos devido aos efeitos negativos da Pandemia da COVID-19 sobre as receitas públicas”. Tal conjuntura levaria a um “déficit orçamentário da ordem de R$ 10,4 bilhões para o exercício de 2021”.
Ocorre que tal alegação de queda das receitas tributárias e aumento das despesas públicas tem sido utilizada desde o início do atual governo como justificativa para a crescente ausência do Estado em setores responsáveis pela promoção da cidadania e descumprimento de suas obrigações constitucionais de garantia do bem-estar social da população e redução das desigualdades sociais e regionais. Ressaltamos que tal obrigação está prevista no Art. 217, da Constituição do Estado de São Paulo: “Ao Estado cumpre assegurar o bem-estar social, garantindo o pleno acesso aos bens e serviços essenciais ao desenvolvimento individual e coletivo”.
No que toca ao estimado déficit orçamentário de R$ 10,4 bilhões, medida muito mais coerente e eficaz seria cobrar os devedores do Estado e rever isenções fiscais às grandes empresas, que permanecem ocultas, sob proteção do sigilo do governo, e que, ao que se sabe, somam, ao menos, R$ R$ 17,4 bilhões em recursos que o estado, por complacência aos grandes empresários, deixa de arrecadar, conforme levantamento realizado pelo Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (Sinafresp).
A proposta de extinção da Fundação ITESP e o discurso vazio da manutenção das atividades em outros órgãos
Feita a consideração inicial, passemos a observar o caso específico da proposta de extinção da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” (ITESP).
Conforme a Lei nº 10.207, de 08 de janeiro de 1999, que cria a Fundação ITESP, esta tem por objetivo, previsto no Artigo 2º, “planejar e executar as políticas agrária e fundiária no âmbito do Estado”.
O Artigo 3º estabelece as ações a serem desempenhadas para consecução de suas finalidades, a saber: I – promover a regularização fundiária em terras devolutas ou presumivelmente devolutas, nos termos da legislação vigente; II – implantar assentamentos de trabalhadores rurais, nos termos da Lei n. 4.957, de 30 de dezembro de 1985, e legislação complementar; III – prestar assistência técnica às famílias assentadas e aos remanescentes das comunidades de quilombos, assim identificados; IV – identificar e solucionar conflitos fundiários; V – promover a capacitação de beneficiários e de técnicos, nas áreas agrária e fundiária; VI – promover a identificação e a demarcação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos, para fins de regularização fundiária, bem como seu desenvolvimento sócio-econômico; VII – participar, mediante parceria, da execução das políticas agrária e fundiária, em colaboração com a União, outros Estados e municípios. (SÃO PAULO, 1999, art. 3º)
Expostas as finalidades da Fundação ITESP, observemos o que diz o texto do PL 529/20.
As atividades públicas relacionadas à regularização fundiária e de assistência técnica a famílias assentadas serão transferidas a entidades que compõem a Administração, notadamente às Secretaria de Agricultura e Abastecimento e da Habitação. Os bens, móveis e imóveis, após transferência ao Estado, poderão ser alienados ou destinados a outros usos de interesse do público (SÃO PAULO, 2020).
Ocorre que, ao analisarmos o que diz o próprio site da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), notamos que sua “missão institucional”, quando muito, apenas tangencia as atribuições da Fundação ITESP, sendo necessário enorme esforço de interpretação de texto e boa vontade (ou ingenuidade) para acreditar que as funções desta poderão ser desempenhadas na estrutura daquela, conforme prevê o PL 529/20.
Vejamos o que diz a SAA a respeito de sua “missão” e “visão” institucionais.
Missão
Promover a oferta sustentável de alimentos saudáveis e seguros, fibras e bioenergia, por meio da pesquisa, inovação, empreendedorismo e gestão de risco, modernizando a infraestrutura do campo, o uso da terra e dos recursos naturais, agregando valor e competitividade aos produtos para a melhor qualidade de vida da população.
Visão
Fazer de São Paulo um dos principais e mais competitivos Ecossistemas Agro, garantindo a segurança dos produtos e processos, valorizando o produtor rural e promovendo o desenvolvimento sustentável (SÃO PAULO, 2020).
Nota-se, assim, por simples leitura e comparação entre os textos, que as atribuições não são as mesmas, como quer fazer crer o governo estadual. Quando muito, as atividades desenvolvidas por ambas se aproximam na forma, mas guardam conteúdos muito diferentes, conforme discutiremos a frente.
Voltemos nossa atenção, agora, para as atribuições da Secretaria de Habitação, outro órgão da administração direta ao qual, supostamente, as atividades da Fundação ITESP serão transferidas. Observemos o que diz o site da Secretaria a respeito de suas responsabilidades.
A Secretaria de Estado da Habitação de São Paulo é responsável pela condução da Política Habitacional do Governo do Estado de São Paulo. Traça diretrizes, estabelece metas, planeja e desenvolve programas específicos para o atendimento habitacional da população de baixa renda, com rendimento entre um e dez salários mínimos e foco principal naqueles com renda entre um e três salários […] Assim, a Secretaria incentiva a regularização fundiária[…] (SÃO PAULO, 2020).
Mais uma vez, quando em comparação, as atribuições não se mostram compatíveis, apenas assemelhando-se no que toca à regularização fundiária, sendo importante destacar que a Secretaria de Habitação trata apenas da regularização urbana, não fazendo parte de seu escopo de atividades a regularização fundiária rural.
Fica claro, então, ao cotejar-se as atribuições da Fundação ITESP, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento e da Secretaria de Habitação, que suas finalidades não são as mesmas e, tampouco, as ações da primeira têm condições de ser executadas nas estruturas das duas últimas. Porém, quando atentamos para a falta de clareza e garantias do PL 529/20, esta discussão é deslocada a segundo plano, dado que em momento algum fica expressamente definido na letra da lei que as atividades da Fundação ITESP serão, de fato, transferidas a outras entidades da administração estadual. Vejamos o que diz o PL em seus Artigos 3º e 4º.
Artigo 3º – Fica o Poder Executivo autorizado a:
I – sub-rogar para entidades e órgãos da Administração Pública Estadual os contratos administrativos dos quais são partes as entidades descentralizadas referidas nos artigos 1º e 2º desta Lei, a fim de manter a continuidade da utilização de bens essenciais e a prestação do serviço público […].
Artigo 4º – Fica o Poder Executivo autorizado a sub-rogar, total ou parcialmente, a critério da administração, a órgãos e entidades da Administração Pública Estadual, sem descontinuidade, contratos de trabalho das entidades descentralizadas referidas nos artigos 1º e 2º desta lei, vigentes até o momento da extinção da entidade […].
§ 1º- O Executivo disciplinará, mediante decreto, a sub-rogação dos contratos de trabalho mencionados no “caput” deste artigo, que somente poderá contemplar os empregados públicos:
1 – admitidos por concurso público, cujas atividades tenham sido absorvidas por órgãos ou entidades da Administração Pública Estadual e absolutamente necessários à continuidade do serviço público (SÃO PAULO, 2020, art. 3º, grifo nosso).

Nota-se o caráter discricionário apresentado pelo PL, deixando a cargo da livre escolha do Poder Executivo a transferência, ou não, das atividades e servidores das entidades extintas a outros órgãos, tornando completamente incerta a continuidade da prestação de serviços essenciais à população.
Cabe destacar, ainda, a previsão de que a sub-rogação dos contratos de trabalho contemplará os servidores “admitidos por concurso público, cujas atividades tenham sido absorvidas por órgãos ou entidades da Administração Pública Estadual e absolutamente necessários à continuidade do serviço público”. Neste ponto, surgem mais questões que carecem de esclarecimento. Gera perplexidade tentar imaginar de que maneira diversos trabalhos executados por um corpo multidisciplinar de aproximadamente 600 funcionários poderiam ser desenvolvidos apenas por alguns poucos “absolutamente necessários”. Permanece, também, sem esclarecimentos quais seriam os critérios a serem adotados para a definição de quais servidores seriam absolutamente necessários. Seriam, por acaso, aqueles ligados a determinado partido político? Em terreno obscuro, o pensamento voa e tende a questionar.
Ademais, frisamos que a Fundação ITESP, não por acaso, está vinculada à Secretaria da Justiça e Cidadania. Mais que prestar Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), a Fundação, conforme descrito anteriormente, promove a regularização fundiária em terras devolutas, implanta assentamentos de trabalhadores rurais, atua na mediação de conflitos agrários e na identificação e demarcação dos territórios das comunidades remanescentes de quilombos. Trata-se, portanto, não apenas de assistência técnica agropecuária, mas de promoção da cidadania, de proporcionar acesso a meios de produção, direitos e equipamentos, como terra, trabalho, moradia, água, energia, transporte, cultura, educação, saúde, dentre outros, objetivando a transformação socioeconômica da realidade. Tais atribuições não estão em consonância com as atividades desenvolvidas por outros órgãos de Estado ou mesmo no âmbito da iniciativa privada. Resta, então, a pergunta: quem as executará?
Com relação à regularização fundiária, estima-se que existam no estado de São Paulo em torno de 500 mil hectares (ha) de terras públicas julgadas devolutas – irregularmente em mãos de grandes ocupantes monocultores –, nas quais o Estado tem o dever legal de implantar assentamentos rurais e que, com a extinção da Fundação ITESP, permanecerão ocupadas de maneira irregular, tratando-se de verdadeiro incentivo (ou premiação) à grilagem de terras no estado.
Em se tratando de comunidades quilombolas, a Fundação ITESP é responsável pela identificação e a demarcação de seus territórios. Tal atividade tem amparo nos termos do Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição da República (1988), e com a extinção da entidade será totalmente abandonada pelo Estado.
Corroborando o exposto, cabe destacar que por mais que tentemos, como dito anteriormente, com muito esforço e boa dose de ingenuidade, acreditar na muito duvidosa possibilidade de realocação dos servidores e atividades da Fundação ITESP nas Secretarias de Agricultura e Abastecimento e da Habitação, não há como não apontar para as flagrantes incoerências e contradições contidas no PL 529/20 e nas declarações do Governo do Estado de São Paulo, nas pessoas de seus representantes. Alega-se que as atividades e servidores serão realocados, entretanto, concomitante a tal argumentação, o Governo Estadual, no mesmo PL, propõe a extinção da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e, também, ainda no mês de agosto, apresenta proposta de “reestruturação da SAA”, com extinção das conhecidas Casas da Agricultura em todos os municípios do estado. Assiste-se, desta forma, ao desmonte dos órgãos que, em tese, receberiam e dariam continuidade às atividades desenvolvidas pela Fundação ITESP, sem que o governo, ao menos, se dê ao trabalho de buscar apresentar de que forma se daria tal realocação ou como seriam operacionalizadas as atividades nos outros órgãos. Ao que parece, apenas irracionalmente tais explicações serão possíveis, fato que não causará estranhamento, dado que o Governo do Estado parece não respeitar os direitos e a inteligência do povo paulista.
A falácia do “inchaço da máquina pública”
Não é de hoje que a narrativa hegemônica atua de maneira a desinformar a população brasileira a respeito dos serviços públicos no país, distorcendo dados, omitindo informações importantes e dando destaque a desvirtuamentos pontuais – que, evidentemente, devem ser combatidos –, dissimulando seus reais interesses e utilizando de toda sorte de meios desonestos para criar verdadeira campanha em prol do desmonte do Estado, difundindo o discurso do suposto “inchaço da máquina pública” no país. Na tentativa de jogar luz nesta discussão obscurecida por interesses escusos, vamos aos números.
Estudo do Banco Mundial mostra que, no ano de 2018, o Estado brasileiro gastou cerca de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) com o pagamento de salários de servidores públicos, ao passo que, no mesmo ano, 40,66% do orçamento público federal foram gastos com pagamento de juros e amortizações da dívida pública nacional, ou seja, R$ 1,065 trilhão destinados ao enriquecimento de setores rentistas, numa dívida que permanece sendo verdadeira “caixa-preta”, nunca auditada, conforme dados da “Auditoria Cidadã da Dívida”. No mesmo ano, o estado de São Paulo destinou, aos mesmos setores rentistas, um montante de mais de R$ 17 bilhões para pagamento de amortização, juros e encargos da dívida estadual, valor que seria ainda maior no ano de 2019, totalizando mais de R$ 19 bilhões, conforme informações da Secretaria da Fazenda e Planejamento, valores consideravelmente maiores que o alegado déficit de R$ 10,4 bilhões.
Feita esta breve exposição, tratemos da Fundação ITESP e a genérica justificativa de necessidade de austeridade e equilíbrio das contas públicas apresentada no PL 529/20, num discurso vazio, em sintonia com a narrativa ideológica neoliberal.
O orçamento da Fundação ITESP, para o ano de 2020, está previsto em R$ 66 milhões – sujeitos a contingenciamentos –, representando, aproximadamente, 0,03% do orçamento total do estado. A título de comparação, é sabido que, ao longo de 20 anos de existência, a instituição, por meio de trabalhos e estudos técnicos, proporcionou ao Estado a economia de mais de R$ 4 bilhões em indenizações indevidas e perda patrimonial. Diluídos ao longo do tempo, tem-se uma economia anual que ultrapassa a marca de R$ 200 milhões, montante de recursos muito superior ao orçamento da Fundação.
Frente ao exposto nesta seção, nota-se o quanto a justificativa do governo do estado de São Paulo para extinção de órgãos públicos, se mostra totalmente carente de qualquer racionalidade e fundamentação científica, soando como tosco discurso publicitário/eleitoreiro, destinado a iludir desavisados.
A justificativa não se sustenta
Mediante toda a discussão anterior, resta somente a conclusão de que a justificativa apresentada pelo governo do estado, baseada em estimado déficit orçamentário decorrente da queda de arrecadação motivada pela pandemia de covid-19 e a consequente necessidade de ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas, não se sustenta. Conforme demonstramos, o discurso e a meta de extinguir indiscriminadamente órgãos públicos vêm desde muito antes de o novo coronavírus alcançar disseminação planetária. Sendo assim, a desculpa da pandemia mais parece um “Cavalo de Tróia” utilizado pelo governo para implementar o desmonte do Estado, apoiando-se numa narrativa vazia e genérica de redução de gastos, sem, no entanto, apresentar quais os critérios técnicos para tal, como as atividades serão continuadas, ou mesmo como ficarão as contas públicas futuras em um estado que paulatinamente destrói sua própria capacidade de investimento.
Em se tratando da extinção da Fundação ITESP, encontra-se em jogo todo o futuro das políticas agrária e fundiária do estado, com sério risco de reconcentração fundiária e premiação aos grileiros de terras com a regularização das áreas que ocupam irregularmente. Trata-se, portanto, de transferência das terras públicas estaduais, patrimônio do povo paulista, para as mãos particulares dos mesmos agentes que historicamente abusam do poder político e econômico e das relações patrimonialistas para se apropriar do Estado e de imensas frações do território paulista.

*Fernando Amorim Rosa é Geógrafo, atua como Analista de Desenvolvimento Agrário na Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” – ITESP. Vice-presidente da Associação dos Funcionários da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo – AFITESP. Doutorando do Programa de Pós-graduação em Geografia, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Rio Claro – S

You May Have Missed