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REMINISCÊNCIA DE UM NATAL EM CURITIBA

REMINISCÊNCIA DE UM NATAL EM CURITIBA

Hotéis são sempre frios, mas não esse. Savoy era o nome dele. Imenso, austero e perto do centro e da rodoviária, uma localização excelente para quem viaja de ônibus; além disso, não é muito caro, e, por isso, não fere os bolsos. Há atividades para se fazer além de assistir TV no quarto, se bem, que não foi para ficar no quarto que eu vim para cá. Mas, se quiser fazer algo enquanto aguarda, há biblioteca, sala de jogos, sala de leitura e também o hall de entrada. A frente do hotel é toda espelhada, permite observar as pessoas que passam nas calçadas, ver se venta ou garoa, o que torna essa cidade ainda mais encantadora.
Kira chegou para tomar café comigo, fui até a portaria para recebê-la, e quando desci à calçada, tropecei e quase caí. Só não esbravejei porque não quis causar má impressão. Mas, qual o objeto do meu despudor? Apenas dois chinelos arrumadamente deixados em frente à porta e voltados para a rua. Kira que já vinha na calçada se apressou em me ajudar e nós duas caímos na risada. Como podia um chinelo usado ser deixado em frente à porta de um hotel? Pergunta sem resposta, então decidimos entrar, mas Kira quis subir ao quarto antes.
Os corredores compridos e escuros acendiam as lâmpadas conforme íamos passando, brincamos com os espelhos, enormes, que tomavam conta das paredes entre um ou mais quadros que compunham aquela sensação de nostalgia.
Ganhamos o quarto e eu ganhei o cabelo desarrumado, as roupas atiradas ao chão, e meu corpo sendo devorado pela ansiedade de Kira, que com maestria me enchia de prazer. Como Kira havia se tornado uma mulher absoluta, empoderada de suas qualidades como administradora e como mulher. Sabia o que queria e sabia o que fazer para chegar ao propósito de seus desejos.
Eu observava tudo, e me deixava ser conduzida por aquela situação, havia um tempo eu não me dedicava ao amor, e, naquele momento, era tudo o que eu mais queria. Depois de tanto amar, um banho, roupas novamente, alinhar o cabelo, batom na boca e o café.
Já na saída para o tour pela cidade, novamente nos deparamos com aquele par de chinelos rosa ao lado da entrada. Algo inesperado para um hotel com aparência tão suntuosa. Quem poderia tê-lo abandonado ali?
O Passeio foi ótimo, seguido do almoço, uma pizza à noite e na volta para o Savoy, o par de chinelos na entrada. Entramos no quarto e Kira começou a arrancar as minhas roupas, jogou-se sobre mim na cama enquanto suas mãos ganhavam meu sexo, e sua boca foi deslizando lentamente até tomar o lugar das mãos. Eu não sei o que era mais perfeito neste fim de semana, Kira na cama, o clima natalino das ruas, praças e parques de Curitiba, ou o chinelo na entrada do Savoy. Inexplicável encanto me tomava aqueles chinelos e tudo o que eles podiam representar. Por que alguém não os tiravam de lá? Eu queria muito saber o porquê, mas não queria perguntar, talvez alguém os tirasse e, os chinelos cor-de-rosa abandonados na frente do Savoy já haviam se tornado uma referência para mim, compunham um inebriado fim de semana em plena Curitiba toda enfeitada para o Natal.
Agora todos os quartos lotados. Muita correria para lá e para cá. Haveria várias cantatas de Natal, além dos shows pelos parques. Curitiba das ruas limpas, suas árvores enormes, seus parques de tirar o fôlego e toda natalina. Os pisca-piscas tomavam conta de tudo, até mesmo o Savoy cantarolava agora, uma cantiga de Papai Noel. E, como eu e Kira nos divertimos naqueles dois dias. E, como era assustador ver aquele par de chinelos abandonados nos esperando e se despedindo de nós em todos os momentos.
Havia, porém, uma última noite na cidade. Kira queria me levar para conhecer o Bairro de Santa Felicidade e o Natal nos Vinhos Durigan, disse que eu nunca me esqueceria daquela beleza e que seria única na minha vida. Ao sair para a rua, os chinelos nos aguardavam em frente à porta, no meio da calçada e um sobre o outro como se estivessem a olhar para mim, pedi para Kira aguardar um momento, ela riu do meu estado e foi buscar o carro, enquanto isso eu pensei que aqueles chinelos deveriam ter sido perdidos por alguém, sem propósito algum, porém, eles só estavam ali ainda, na porta do hotel porque eram seminovos e as pessoas estariam esperando que alguém os levassem dali. Kira chegou e abriu a porta, seu sorriso lindo e aquela voz deliciosa, “Está pronta Flor?” Eu sorri para Kira e segui em sua direção, mas antes tirei as luvas e peguei os chinelos e os embrulhei em um lenço que estava em minha bolsa. Kira riu me apoiando e disse “Então vamos”.
Cidade mais que linda, quero vir morar aqui em breve, durante estes dias fizemos planos e assim que virar o ano, se Gaia permitir estarei aqui por inteira. “Pare Kira”, “O que foi?”, ela disse. Eu mostrei-lhe os chinelos e com as mãos apontei um senhor que empurrava uma bicicleta perto do farol. Estava sujo, a barba por fazer, e antes que parássemos tinha dado com as mãos, provavelmente ia nos pedir algo. Desci do carro com os chinelos envoltos ao lenço que eu já tinha usado bastante, aproximei-me e abri o lenço deixando que ele os visse “Talvez o senhor conheça alguém que poderá fazer bom uso destes chinelos”, ele me encarou, olhou para as minhas mãos, abriu as suas e eu depositei sobre elas o embrulho, ele sorriu sem nada dizer, e quando eu ia saindo, voltei, peguei 100 reais na carteira entreguei para ele, “Feliz Natal”. Entrei no carro, Kira apertou a minha mão e eu a beijei mordendo seus lábios, o que a deixava brava, pois dizia não gostar de sentir dor, rimos e fomos para Durigan.
Não há como descrever Durigan, é preciso estar lá e sentir a energia da autenticidade, da beleza e do poder que emana daqueles vinhos. Mas, há como falar do Vinho Merlot, incandescente, encorpado que acompanhou nossa última noite de amor em um motel qualquer de Curitiba, o motel era o que menos importava, o que fazíamos uma no corpo da outra era o que nos movia, o que nos extasiava.
No outro dia, eu, meu casaco e um doce de figo cristalizado comprado em Durigan me acompanhavam até a rodoviária. Kira estava no trabalho, muitos compromissos, e por isso, um Uber me levava para pegar o ônibus que me conduziria de volta para casa. Talvez, na Noite de Natal estivéssemos juntas novamente. Talvez, viajássemos em janeiro e, talvez, eu estivesse morando em Curitiba a partir de fevereiro.
Mas, o farol fechado e minutos intermináveis de espera, o olhar atento se despedindo de tanta magia. Homens e mulheres sentados debaixo de uma árvore próxima à rodoviária, um fogo aceso no chão com uma panela em cima, caixotes espalhados pelo chão e, o senhor de barba para quem dei os chinelos… Meu Deus, o meu lenço no pescoço de uma mulher… Ela está sorrindo… Cadê os seus pés… Cadê os seus pés… Os chinelos rosa em seus pés… Meu Deus! Os chinelos estão em seus pés! O lenço amarrado no seu pescoço… Sorrindo…
O farol abriu, minha respiração ofegante, duas lágrimas brotaram dos meus olhos e correram pelo rosto tão silenciosas como o meu coração em saudade… Enfim partimos.
Ah, o Natal! Como ele me deixa comovida.

Silvia Aparecida Araujo

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