As ruas e o tempo frio
Profundamente seco e frio estão os tempos, pessoas têm os tempos em suas entranhas, na mesma medida em que fazem, juntas, os tempos que vivem. Tem uma neblina grossa contornando os dias, pó denso de desumanização, de maldade e estupidez. Essa neblina sangra os olhos, degenera os ânimos, enfia grossos espinhos nos narizes, transforma a gente em coisa oca.
Não é de hoje, bem sentimos. Mas é que agora, ai! Não queria mesmo ter um fascismo pra chamar de meu, parecida Inquisição pra me queimar de novo e um governo com mais militares no poder do que na própria Ditadura empresarial-militar de 1964.
Hoje tenho a resposta na ponta da língua para a questão: como funcionava a cabeça das pessoas que viveram a invasão nazista ou o período de escravização de povos africanos? Funciona com certo grau de naturalização, umas mais, algumas quase completamente, outras, as mais desajustadas, menos. Não é suportável uma situação limite, como bem mais de 500 mil brasileiros mortos de março de 2020 até hoje, sem torná-la, em algum grau, normal, natural, rotineira, conta a nova e segue o fluxo. Fingir normalidade e obediência.
Aliás, sincera e profundamente: o que fizemos desde que esse país foi invadido pelos europeus além de cair nas mentiras contadas pelas classes dominantes, lutar, resistir, isentar torturadores, homenagear ditador em nomes de ruas/rodovias, cair de novo? Eleger presidente que elogia torturador, esse é um fim do negacionismo, da desvalorização sistemática da História, enquanto disciplina científica, em um sistema de educação pública que forma consciências para a defesa do livre mercado e da ética neoliberal.
A grossa neblina dos nossos dias é feita de obscurantismo e negacionismo para aceitarmos o horror em que nossas vidas foram transformadas. Botijão de gás a cem reais, mãe morta, criança assassinada, doze horas diárias de trabalho, sem férias, sem décimo terceiro, com seu próprio computador, fone de ouvido e celular, o mando do patrão acima de qualquer lei ou escrúpulos. Melhor ainda: o patrão é o aplicativo e a gente nem percebe, a nova onda é a uberização da vida, da nossa vida, cada vez mais barata. No fim das contas, de golpe a negacionismo da pandemia, é tudo pra isso: baratear o custo da nossa força de trabalho. Comprar barato nosso trabalho e vender caro os serviços e mercadorias. É seco e frio, e como dói na nossa carne.
E as pessoas, como estão as pessoas nesses tempos absurdos? A maioria segue fria e seca. Nunca vi tanto sentido na barata de Kafka como nesses dias. Tenho sentido uma terrível solidão gelada, não é porque não tenho amigos, sou feminista e bem amada, acho que é porque estamos carentes da mínima cumplicidade em olhos desconhecidos, uma chama humana um pouco atenciosa, que se importa. Solidariedade humana não é negociável. São tempos de profundos descasos.
Não é apenas nas “piadas” de extrema frieza do Presidente da República em relação a tantas vítimas de seu governo, é sobre como estão as políticas públicas, como está nosso cotidiano. O capitalismo quer nossa frieza para sobreviver, quem sente quente não tolera o intolerável.
Uma vez, uma chefa minha elogiou, com um sorriso estranho, eu ter sido escolhida pelos alunos como orientadora de estágio, esse sorriso estranho dava a frieza necessária para retirar a vaga da minha amiga, outra orientadora de estágio e sobrecarregar minha já pesada jornada de trabalho. O capitalismo seduz para dar cabo do nosso próprio açoite. Como é a placa do Dante?! Entra e esqueça as ilusões.
Como nem o fascismo é unânime, ainda há, por todos os amores, os de coração quente. É com essas pessoas que pulso junto. São essas pessoas que estão bravamente nas ruas, em luta contra o governo Bolsonaro-Mourão, contra a miséria, por nossas vidas dignas. Que se importam tanto que dedicam seu tempo para participar de reuniões, organizar-se coletivamente, panfletar, dialogar, produzir conteúdos para redes e construir as importantes manifestações que estamos vivendo desde maio. Militante é estudante, trabalha, tem as mesmas rotinas extenuantes que a maioria das pessoas, mas aprendeu pra valer que a história não se faz sozinha, nem pelas mãos dos poderosos ou do Google.
Parece que se não tomarmos massivamente as ruas, o tempo frio não vai passar.