Olha o trem!
Mais um dia desolador. Às vezes falta até olhos, às vezes é bom não sentir profundamente. Os olhos tem mesmo laços com os sentimentos. Por isso que só ter nascido com olhos sadios não basta, é preciso encher os olhos de humanidade, de bons produtos humanos, de toda cultura que inventamos. Nem os nossos olhos são feitos apenas de agora.
Na escuridão fiz uso de um amuleto herdado, simples, com desenhos de Carybé. Nesse pleno dia de semana, dolorida, pego meu Cem anos de solidão e vou pra rede, lá tem outro balanço, outra luz. Em Macondo chove mais que em Ourinhos, mas tenho a leve percepção de ser o mesmo lugar.
Entre outras, Garcia Márquez contou que militares, a mando de um grande empresário da cidade, mataram mais de três mil trabalhadores em um só dia. Um dos Buendia estava com esses trabalhadores no dia do genocídio e acordou em um trem. Abrindo bem os olhos, percebeu que acordava acima de todos os defuntos, o trem estava levando os mais de três mil trabalhadores assassinados. Ao voltar e indignado relatar o que viu, o Buendia ouvia a frase unânime: não há mortos em Macondo. Assustadoramente, a vida seguia normal.
Negar a realidade, criar tom de normalidade ao insuportável, parece uma já conhecida tática da guerra política. E, infelizmente, para alguns de vista pouco cultivada, é suficiente. O trem que corta Ourinhos já matou a mãe da minha amiga. Ele está cada vez mais cheio e rápido e sem prefeito para impedi-lo. O prefeito parece ter mais olhos e ouvidos aos grandes empresários. Assustadoramente, não há lockdown em Ourinhos, não há auxílio emergencial municipal, não há informações transparentes sobre vacinação. Há muitas variantes do Coronavírus, há também cemitério lotado, não tem mais chão para enterrar novos mortos e um prefeito que gasta sua valentia bloqueando pessoas nas redes sociais. Coragem é fazer o que precisa ser feito. Quem obedece aos grandes tem outros adjetivos, gosto de lacaio porque me lembro de Brecht. Tem outros destinos também: descartável, lixeira da história.
O Buendia que sobreviveu ao trem, seguindo a tendência da solidão, preferiu o isolamento num quarto centenário da família. Aqui eu ouço Garcia Márquez dizendo: não é de forma individual que se muda a história coletiva. De olhos bem nutridos, atentas e coletivamente organizadas, precisamos fazer nascer os próximos cem anos.