Tempos de explodir

Não dá pra ver da janela o que vai ser da gente. O voo alto dos passarinhos parece apontar para um destino menos tacanho. Mas, não é só da natureza que depende nosso rumo, também ela é impactada pela nossa desgraça. Vendo fundo na janela é possível vislumbrar um recado: é insuportável a história continuar a mesma.

Com tantos mortos, alguns, os mais sensíveis e poetas, até pra fugir da mesmice eterna, continuam cantando a velha composição, recusando aceitar o inaceitável. Fazem um coro para ouvidos atentos, insistindo: “batidas na porta da frente é o tempo”. É ele mesmo a cobrar de nós o aluguel atrasado.

Por todo canto desse mundo redondo, parece que visto pelo retrovisor, as artimanhas do presente espetam os nossos olhos. São as cenas da escravidão que não acabaram, assim como, o genocídio do povo indígena que se perpetua e o terrível fantasma do fascismo que continua puxando nosso pé. Imbricado a isso tudo, como pai generoso de todas as violências, o soberano capitalismo.

De olho meio aberto, parece que a história está exigindo passos além das janelas, está impondo a ousadia de enfrentar a realidade, de romper as molduras confortáveis para nascer o futuro, não aquele com cara de passado, que já vem ao mundo viciado pela mesquinharia de quem sempre mandou, mas um forjado por nossas mãos trabalhadoras e corajosas, mãos coletivas que já criaram tanta beleza e rebeldia.
Mas ainda é a angustia que toma nossas noites e nossos dias, como seres humanos cindidos, divididos entre o pensar e o agir, com anos seguidos de amortecimento, padecemos da janela. Ou recorremos às pílulas da farmácia de cada esquina. Pela janela dá pra ver, tem mais farmácia do que espaços para encontro, diversão, arte e debate.

Individualizamos o sofrimento que é coletivo, aplacamos o sofrimento com psicotrópicos, com respirações da moda que, de tão insuficientes, não podem encher os pulmões, nem erguer nossas mãos. Só tem uma saída desse doloroso labirinto de fome e desespero e é coletiva. Coletiva de seres humanos comuns, que pegam ônibus, que trabalham, tentam comer e amar.

Estranho dizer de amor em meio ao horror. Mas não é. Aliás, é a forma humanamente possível de combate. É preciso amar pra combater, mas um amor que saiba o que odiar. A mão humana inventou o amor e transforma o mundo, as coisas, o próprio feito de amar. Amar é ação não egoísta que constrói o amanhã. Como na canção: “que não seja meu o tempo em que amor morreu”.

O que nos segura os tornozelos para aceitarmos a soberania do ódio, da ignorância, do insuportável? Por que não rompemos com fúria a janela? Por que seguimos defendendo as vidraças, os lucros alheios e abrimos mãos de nossas vidas? Por que não exigimos para nosso próprio usufruto coletivo todo conhecimento, tecnologia, bens materiais e toda riqueza em geral que produzimos?

Invoco o resgate do elo perdido entre pensar e agir. Na construção ativa do agir pensado, do agir ético-político. De um agir guiado pelo pensamento e pelo sentimento que defenda nossos interesses de classe trabalhadora, assim como, o pleno desenvolvimento humano em nossas riquíssimas diversidades. Aposto nesse agir eticamente comprometido de classe e de amor, sem jamais confundir amor com passividade. Amor reage, enfrenta e cria, não tolera violência. O amor é radical.

O amor radical é a única possibilidade de destruição do rato raivoso do fascismo e do seu pai. A arte é outra filha da radicalidade, como um poderoso instrumento da sensibilidade humana, capaz de criar o que ainda não se enxerga, o que ainda não se sente. Não é a toa que os fascistas odeiam os poetas, os artistas, os bons homens e todas as mulheres. Somos muito perigosas, as vezes, como bruxaria, sacudimos o mundo.

Aos que temem a nossa ação coletiva, o ruir da pré história, que tem medo da queda das estátuas de escravocratas e metem a mão imunda em tudo aquilo que criamos, todo nosso amor radical. Não digo outra coisa, Bacurau já basta.

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