O papel do educador “se nada der certo”…
por Fernando Horta
Sou professor desde 1996. Lá se vão mais de 20 anos. Neste tempo todo eu sempre vi a profissão de educador como um barco furado. Um barco furado ainda navega, mas precisa de trabalho constante. Precisa que lhe retirem o peso, e este peso insiste em retornar. Ser professor é, antes de tudo, ser um eterno aluno. Estar disposto a aprender com todos e com tudo o tempo todo. Quando você acha que já sabe, deixou de ser professor. De alguma forma, não somos professores (ou educadores), estamos sendo. A ideia da continuidade tem que ser jogada sempre e para a existência.
Neste tempo todo sempre disse aos meus alunos que não trocassem um punhado de boas dúvidas por pilhas de certezas. Saber duvidar, saber perguntar é saber. Ter certeza é apenas reconhecer em algo um reflexo do seu próprio pedantismo. Quando se tem certeza do saber, ele deixou de ser saber para ser algo próximo ao dogma. E é mais difícil discutir e questionarmos a nós mesmos do que aos outros. Somos muito convincentes quando o interlocutor é o espelho ou o travesseiro.
No fundo, o papel do professor é cultivar boas dúvidas. A dúvida incomoda, desconcerta, causa estranhamento. E é disso que se trata viver. Quanto menor for o punhado de certezas que temos que ter como obrigação para o viver, tanto melhor. A educação que entrega certezas é sempre uma pregação. É uma profissão de fé, fantasiada de um racionalismo raso. No fim, se temos certeza não precisamos experimentar. Nem testar. Nem criticar. Basta arrumar os dados ou fatos numa narrativa que me faça sentido e surge a verdade. Ou a “pós-verdade”.
É claro que duvidar cansa. Questionar dói. É um processo de rasgar-se, pois tudo o que se conhece, vem através do eu que conhece. Portanto, criticar é sempre criticar a si mesmo antes do objeto. E há quem tenha medo disto. Há quem não se sinta confortável em duvidar de si. Mas se não te sentes confortável com a dúvida, não sejas professor, nem educador, nem cientista. Não há problema em ter-se tanto medo de se estar errado que não se ponha a questionar-se. O errado é passar esta postura aos nossos jovens. Passar certezas aos mais novos deveria ser declarado crime. Se eles acreditarem a sociedade para. Simples assim. Ainda bem que eles são cabeças duras e que é da natureza dos jovens questionar.
As escolas deveriam ter a capacidade de separar os verdadeiros professores (aqueles que cultivam dúvidas) dos pregadores (aqueles que apresentam certezas). A característica do nosso tempo é que tudo o que se sabia hoje se tornou dúvida. Da Matemática e os teoremas Gödel à Física e a Teoria Quântica. A cada certeza que parece existir surgem um sem número de dúvidas. O avanço é trôpego e sujeito a grandes recuos. A verdade é que não há conhecimento sem um grande número de axiomas. Coisas que aceitamos por verdade sem uma real “prova”. E isto em todas as áreas tocadas pelo método científico.
A percepção utilitarista e narcisista do “dar certo” (ou não) é uma armadilha horrorosa que destrói a educação, a ciência e a sociedade. Primeiro porque não deveria ser possível a ninguém julgar outro sob a batuta do que lhe parece ser sucesso. Esta é uma violência inominável com nossos alunos. Em segundo lugar, porque se a ciência se pautasse apenas pela noção do útil ou do que pode ser “usado” e dar “lucro” estaríamos centenas de anos do desenvolvimento que estamos hoje.
Do ponto de vista humano existir, no meio de tantas incertezas é “dar certo”. A vida, qualquer uma e todas elas, já deu certo. E deveríamos ensinar aos nossos alunos que toda vida é um exemplo de sucesso. Seja do físico portador de esclerose lateral amiotrófica e que encanta o mundo, ao usuário de crack jogado numa rua de uma grande cidade. Ambos lutam e lutaram pela sua existência e é nosso dever reconhecer isto. Os tempos, as oportunidades e as próprias condições psicológicas, econômicas ou sociais podem ser diferentes, mas não nos é possível valorar.
O capitalismo surge portador de muitas respostas e é ele quem diz, aos seus súditos, quem deu ou não certo. Mas o capitalismo tem pouco mais de 200 anos e já está destruindo o planeta. A Humanidade tem 200 mil anos e até 199 mil e 800 anos atrás viveu em harmonia com outras espécies neste planeta. No final quem deu certo? O indígena que sobrevive há mais de 10 mil anos integrado com a natureza ou o bilionário do ramo de petróleo que não acredita no aquecimento global e no seu tempo de vida pode levar o planeta a um ponto inviável de recuperação?
Eu não sei. O que me cabe saber é que professores devem cultivar dúvidas. Devem ensinar a duvidar e criticar. E para fazer isto, é preciso saber conviver com a incerteza, é preciso saber-se incompleto e finito. Para se ser educador, mais do que conviver com suas dúvidas é preciso cultiva-las. É necessário ter coragem de dizer “não sei” e mais coragem ainda para aprender com quem também parece não saber.
Este texto terá dado certo se a cada 10 pessoas que o lerem, uma sair com dúvida. Eu sou professor e cultivo dúvidas, fomento críticas, desconstruo mais do que quero construir. No fundo sou um iconoclasta que prefere reconhecer-se ignorante a assenhorear-se da verdade absoluta. E nós, professores, deveríamos saber disto mais do que qualquer outra pessoa. Por profissão. Por humanidade. E por vocação.