Escola de lugar nenhum: as distopias da educação no estado de São Paulo
por Lucas Fuini*
Vem da Grécia o sentido de “utopia” como “sem-lugar ou não-lugar” ou algo sem espaço para realização em um momento específico. Com o tempo, a ideia de utopia foi ganhando uma conotação positiva, designando os projetos ou sistemas de pensamento que visualizavam uma sociedade menos desigual, mais humana e harmônica em termos sociais, econômicos e ambientais. O próprio pensamento revolucionário (anarquista ou socialista), em meados do século XIX, ganhou ares de utopia devido à sua dificuldade em se impor espacialmente contra as forças conservadoras e autoritárias então vigentes (monarquias ou repúblicas aristocráticas).
A última novidade da Secretaria de educação do estado de São Paulo para reestruturação do sistema escolar reforça essa ideia de utopia, mas em um sentido negativo. Na verdade, a utopia aí aparece como um castigo à diversos professores e alunos (e famílias, por conseguinte), que ficarão sem escolas (sem topos, sem lugares) para exercer sua identidade cultural e territorial do estudo e do trabalho, para construírem suas narrativas cotidianas em espaços educativos com uma historicidade construída pelo esforço coletivo diante das agruras e vicissitudes do desinvestimento nas instalações físicas e na desvalorização salarial e profissional que vem se acumulando. Narrativas de um lugar/território
chamado escola que novamente não são levadas em consideração na elaboração e execução de uma política pública.
Primeiro, vamos às informações. Há um processo em voga, impetrado pelo atual Secretário de educação do governo Alckmin, Sr. Herman Voorwald (ex-reitor da Unesp), chamado de reordenamento dos ciclos, que visa manter em cada unidade escolar apenas um ciclo de ensino (ou anos iniciais do ensino fundamental, do 1o. ao 5o., ou finais, do 6o.ao 9o., ou o ensino médio, do 1o. ao 3o.). Isso implicará em transferência de alunos, ou seja, um movimento de desterritorialização e de reterritorialização não planejado, imprevisto e, por vezes, violento. Segundo dados da Folha (caderno de Educação, de 15/10/2015), é um processo que afetará até 1.000 escolas (de um total de 5.108) e entre 1 milhão a 2 milhões de estudantes (de um total de 3,8 milhões). Afirma-se que o objetivo é manter o professor efetivo com sua carga horária atrelada à escola onde é efetivo (sua sede). A justificativa seria adequar os espaços escolares ao novo perfil demográfico etário (menos crianças e mais jovens) e criar polos de referência para cada ciclo de ensino visando melhorar o rendimento dos alunos.
No entanto, segundo Douglas Oliveira, professor da rede pública em São Paulo capital, em depoimento à Carta Capital, o que se pretende é diminuir os custos do sistema (inclusive com o fechamento de 250 escolas), preparando-o para o ensino de tempo integral e com gestão privatizada e municipalizada. No entanto, esse plano ainda não menciona se nesse processo estão sendo incluídos os investimentos em modernização das instalações escolares, no transporte de alunos que vão estar mais longe de suas escolas-referência e valorização salarial e profissional dos profissionais da educação em carga horária ampliada. O problema é que se trata de mais um plano elaborado nos gabinetes do governo pelos pedagocratas (burocratas travestidos de pedagogos, ou vice-versa), com olhar nos dados econômicos do sistema, e sem consulta democrática às bases (alunos, pais, professores e gestores), tratando a escola como mero recipiente de alunos-objetos e não como espaço de construção do conhecimento por sujeitos sociais, um incômodo financeiro que vai na contramão das expectativas dos agentes da educação que sempre foi de ter menos alunos por sala para se ter uma melhor atendimento e qualidade da aprendizagem. Essa iniciativa assume todos os desacertos de algo que não foi amplamente informado e debatido com as partes que serão afetadas, em suma, um movimento autoritário.
Em um Estado que responde por mais de 33% do PIB brasileiro, mas é apenas o 17o. em remuneração do professor da rede estadual (R$ 1.844,90, para carga de 40 h, em valor de hora/aula de 9,22 reais/ Dados Boletim CUT, 2013) não seria de estranhar essa proposta. O Estado de São Paulo, como agente maquínico, na concepção de Deleuze; Guattari, promove a desterritorialização de milhares de alunos e docentes (sobretudo os não efetivos), quebrando vínculos e identidades construídas no cotidiano do processo de ensino-aprendizagem e na identidade bairro-escola, e promete uma reterritorialização incerta, potencialmente precária devido às distâncias, custos de deslocamento e o subinvestimento visto em salas de aula lotadas e sem equipamentos multimídia disponíveis a todos em plena era digital da sociedade da informação. Com oportunidades de carreira pouco atraentes no ensino público básico, docentes devem migrar, ou se desterritorializar, e reterritorializar na rede privada, técnica ou municipal, geralmente a ofertar melhor salários e condições de trabalho.
O que parece que se está a promover é uma verdadeira distopia, e não utopia, reorganizando geograficamente o ensino público de maneira a criar escolas de lugar nenhum, sem vínculos com bairros, com suas gentes e com seus professores, obrigados a transitar entre várias escolas. O sentido de distopia, segundo o dicionário, é de “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação, a antiutopia”. A ideia poderia até ter sido bem recebida se viesse a valorizar as heterotopias, os lugares das diferenças e do respeito às realidades locais de cada escola e sua comunidade, em um processo democrático consubstanciado nas narrativas escolares e de acolhimento ao verbo que vem desde baixo (dos sujeitos do processo educativo) e, não da forma hegemônica, desterritorializante e opressora como se propõe. A resistência a isso, as manifestações do dia 15/10 em várias cidades e escolas do estado, ecoam o nível de descontentamento pelo não esclarecimento e pela discordância, pelo desejo de reconhecimento de ser e estar em um lugar.
E parabéns aos professores deste país e de nosso estado pela incansável luta pela educação em uma nação-território que não a trata como prioridade (pelo menos não nas narrativas e atos de seus governantes)!
*professor doutor da UNESP campus de Ourinhos – Artigo publicado originalmente em Jornal da Divisa.