A culpa é do ex
A esposa se aproxima do marido, uns papéis na mão.
– Môr, preciso falar com você.
O marido suspira. Está jogando videogame, olhos opacos presos em direção à tela. Veste uma samba-canção de imitação de seda, uma camiseta desbotada do AC/DC e tem duas latas de energético ao lado.
A jovem insiste:
– A gente tá com vários problemas. Dinheiro, por exemplo.
O rapaz pausa o jogo e vira com cara de o-que-foi. A mãe insiste:
– Já falamos que estamos passando toda uma situação complicada, que a gente tem que gastar só com o indispensável. E o que eu vejo aqui na fatura do cartão? Essa coisa… o que é “isquim”?
Finalmente ele abre a boca, visivelmente desconfortável, com leve toque de superioridade, como se fosse um gesto condescendente:
– É skin. Do jogo. Preciso delas.
– Pra quê?
– Para o jogo.
– Viu, em que realidade você vive? Gastou um terço do nosso orçamento com essa porcaria de jogo, energético e leite condensado…
– Preciso pra ter o bom desempenho no jogo.
– A gente tá sem dinheiro. Você não faz nada, só fica em joguinho, em láive e falando com esses amigos esquisitos.
– Escuta aqui – ele cresce. Mas ela não se amedronta. Já deu.
– Escuta aqui você. O Enzo tá doente, tossindo há dias, com febre forte, tô muito preocupada com ele, queria de todo jeito levar em um médico e você não deixou, dizendo que a gente tava sem grana, aí você vai e gasta nessas porcarias sem sentido?
– Isso daí é só uma gripezinha (ouve-se a tosse ao longe; a mãe começa a chorar). Engole o choro. Chega desse mimimi.
– Você tá louco?
– Vai pedir dinheiro pra médico na casa da sua mãe.
– Seu irresponsável, o pai dele é você!
– E daí? Sou pai, mas não sou médico, não posso fazer nada.
– Pelo menos levanta desse sofá podre e vai ganhar um dinheiro qualquer.
– Não é culpa minha essa situação. Você preferiu ficar em casa cuidando dele, ao invés de ir trabalhar. Acreditou nessa história de febre, aí. Nosso filho tem físico de atleta, não vai ser nada. Dá limão e licor de cacau Xavier pra ele, que resolve.
O filho aparece em cena. Está com aquela palidez de quem está febril dias seguidos. Fala sem forças:
– Pai… dodói…
O pai se levanta, deixando cair farelos de bolacha Passatempo de seu colo:
– Se você não tivesse usado em outras coisas o meu dinheiro, não faltaria remédio!
– Primeiro que não é seu dinheiro, é nosso! E a gente gastou com comida, seu…
– Seu o quê? Hein? Fala? Não te dou uma na cara, porque você não merece. Você poderia estar no bem-bom agora, mas todo o dinheiro que você ganhou, você deixou seu ex roubar e gastar.
– Como é?
– Isso mesmo. Seu ex deveria ter pago o plano de saúde para o menino.
– Mas eu tô casada com você há dois anos… me separei dele, sei lá, há uns dez anos…
– Até quatro ou cinco anos atrás você tava sempre com aquela amiga dele.
– O que isso tem a ver? Eu tô casada com você agora! E tem mais, rompi com ela porque você me convenceu a isso, quando a gente ainda tava se conhecendo!
– Não é problema meu se o seu ex acabou com você e com seu dinheiro. Se eu mandasse em tudo nessa casa, ia ser diferente. Mas não, você ganhou o direito de fazer tudo do seu jeito, tem lei Maria da Penha, tem as feministas…
– Do que você tá falando?!
– É tudo culpa desse comunismo, que tira nosso dinheiro, que desvia as famílias. Se não fosse a influência dessa gente, nosso filho tava bem.
– Nada do que você tá falando muda o fato de que nosso filho tá doente e precisa de ajuda urgente!
O filho desfalece. A mãe corre acudi-lo. Segura-o pelos braços, olha para a plateia e diz:
– Tem alguém aí pra ajudar a gente?
Luiz Bosco Sardinha Machado Júnior
Psicólogo e professor universitário