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Alvos estritamente vigiados

Alvos estritamente vigiados

Por João Teixeira

A ofensiva anticomunista do regime militar (1964/85) causou vítimas cruciais nos anos 70, em São Paulo.
Após ter abafado a explosão de fragmentos da oposição armada – quase 50 organizações, ora aliadas, ora rivais, parte delas de linha pacífica, com estratégias e táticas distintas visando tomar o poder de assalto, cada qual á sua maneira – os generais voltaram suas baterias contra o Partido-mãe, a matriz marxista de todas organizações clandestinas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que está completando um século de existência neste 2022 como o mais antigo partido político do Brasil.
O PCB possuía, então, 17 mil militantes, segundo o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).
Desde 1958, o PCB vinha adotando a luta política pacífica, segundo a estratégia apontada por Antônio Gramsci, um dos mais originais e importantes pensadores marxistas do Ocidente, autor da tese da revolução pacífica dentro do aparelho do Estado.
Era possível chegar ao socialismo através de eleições.
Prisioneiro do fascismo na Itália, Gramsci (1891/1937), em “Cadernos do cárcere”, afastou a tese leninista de que a força bruta fosse essencial na transformação da sociedade industrial.
Isso era possível pela “manipulação sutil com que a classe dominante conquista a aceitação de sua ideologia por intermédio das normas e das instituições da sociedade burguesa”.
No Brasil, 47 organizações clandestinas envolvidas na resistência armada de linha marxista-leninista chegaram a mobilizar 25 mil militantes no período.
O PCB (Partidáo) não conseguiu controlar o que Prestes chamou de “sarna revolucionária pequeno-burguesa”.
O radicalismo político foi detonado por minúsculas organizações formadas, essencialmente, por jovens estudantes, idealistas, voluntaristas, espontaneístas, de pouca leitura e baixo nível teórico, que abraçaram cegamente a utopia de salvar o mundo do capitalismo para implantar o comunismo.
“A maior parte enxergava o caminho de acelerar o curso da História através da revolução em armas” (Hugo Studart, em “Borboletas e lobisomens”, pg 49).
A aventura armada deu no que tinha que dar.
Tanto as Forças Armadas brasileiras quanto os movimentos de oposição que a elas se opuseram tinham um traço em comum: não eram monolíticas.
Em alguns períodos históricos, as F.A. tiveram pontos de convergência e ideologias hegemônicas: o positivismo que resultou na República (1889); o liberalismo que derrubou a ditadura de Getúlio Vargas (1937/45); e o macartismo do regime militar (1964).
Novas idéias e ideologias de múltiplos matizes vicejaram, portanto, no decorrer do século XX, do Colégio Militar á Escola Superior de Guerra (ESG).
Inclusive o marxismo-leninismo.
O PCB, fundado em 1922 por integrantes do movimento tenentista e liderado, desde os anos 30, pelo capitão do Exército Luiz Carlos Prestes, nasceu de uma costela das F.A.
A partir de 1964, o anticonunismo – esse fantasma folclórico semelhante á Mãe D’água, o burro-sem-cabeça e o Saci-pererê com que o decrépito bolsonarismo tenta assustar os incautos – prevaleceu de forma clara e hegemônica, desde a Intentona Comunista de 1935.
Mesmo assim, houve militares marxistas, como o capitão Carlos Lamarca, comandante da guerrilha urbana; o general e historiador Nelson Werneck Sodré; e o general Lincoln Oest, explodido na tortura por seus algozes, entre os mais conhecidos.
Os vários órgãos de segurança (CIE, DOi-CODIs, Cenimar, CISA, Dops estaduais etc.) Disputavam áreas de atuação, prestígio, prêmios e promoções nas carreiras na “indústria” do anticonunismo.
O CIE, do Exército, especializou-se em guerrilha rural; o Cenimar, da Marinha, o mais antigo e secreto, em guerrilha urbana; e o CISA, da Aeronáutica, na preparação do esquema de terror e extermínio de militantes esquerdistas.
O CIE e unidades militares regionais imprimiram campanhas paralelas – e complementares – nas campanhas contra a Guerrilha do Araguaia (1972/75), protagonizada pelo PC do B (300 militantes).
Nos anos 70, a “limpeza de área” para concretizar a “abertura lenta, gradual e segura” do general-presidente Geisel (1974/79) custou a vida de um terço dos membros do Comitê Central do PCB – contrário á luta armada – em dois anos.
Um comunista histórico, Severino Teodoro Melo (1917), que havia lutado com Prestes para reorganizar o PCB após 1945, detentor de segredos indevassáveis, passou a colaborar com os órgãos de segurança.
“Meláo”, como era conhecido, ao lado de outros “cachorros” provocou muitos estragos.
A “célula comunista” alojada na Imprensa – aquela que o general D’ávila Melo foi incapaz de extrair do jornalista Moura Reis no II Exército- foi alvejada em cheio pela máquina policial e militar
A extensa lista de jornalistas prisioneiros do Estado – Sérgio Gomes; Anthony de Christo; Paulo Markun; Dilea Frate Markun; Duque Estrada; Lu Fernandes; e Ricardo Morais, entre outros – foram atingidos nesta redada.
Hoje, com as informações disponíveis, essas vítimas da ditadura acham que talvez devam suas vidas ao sacrifício de Herzog.
O assassinato, sob tortura, de Vlado Herzog, diretor de Telejornalismo (“Hora da Notícia”) da TV Cultura, judeu iugoslavo fugido do nazismo que trabalhou na BBC de Londres e que sabia dos riscos que corria ao vir para o Brasil, foi um “tiro no pé” do regime militar.
A estupidez do sacrifício de Herzog – ele foi de táxi ao DOI apresentar-se espontaneamente e saiu de lá dentro do caixão- chocou nossa categoria profissional e a sociedade em geral.
O forte Sindicato dos Jornalistas de São Paulo elaborou o histórico manifesto “Em nome da verdade”, com as assinaturas de 1004 jornalistas de São Paulo, Rio, Brasília e Porto Alegre, um marco no processo de redemocratização do País.
Herzog, um simples colaborador do PCB, tornou-se símbolo de nossa violência política. Merece artigo á parte.
O caso Herzog foi a gota d’água na queda de braço entre os “duros” do Exército e os moderados distensionistas de Geisel.
Quando a tragédia se repetiu, com o assassinato, também sob tortura, do operário Manoel Fiel Filho, em 17 de janeiro de 1976, Geisel mostrou sua força contra os porões- origem e símbolo exaltado por Bolsonaro – fora de controle.
Pela primeira vez na história da República, um general quatro-estrelas, Ednardo D’ávila Melo, foi exonerado por um presidente da República.
Brasília sinalizava o im da era em que os comandos militares eram comandados como feudos – a prática medieval que o expulso Bolsonaro tenta fazer ressurgir em nossos dias com suas milícias pretorianas e corruptas.
A posse do general Dilermando Monteiro, afinado com a distensão, aliviou o terror político em 1976.
A tensão deu lugar á cordialidade dos militares em relação aos civis.
Com o ar mais respirável, o jornalista Moura Reis, chefe de redação de O Globo em São Paulo, voltou ao gabinete militar.
Em circunstâncias mais amenas, Moura foi bater continência, de forma diplomática, em sinal de boas vindas e convivência pacífica.
Enfim, os militares fumavam o cachimbo da paz com a sociedade, as oposições e a Imprensa. O Brasil iniciava a travessia democrática após as tempestades do mar revolto.
O folclore surgiu no diálogo amistoso travado entre o general Dilermando e Moura Reis.
Um soldado chegou batendo continência.
Anunciou-se como o guarda do banco e retirou -se do gabinete militar.
O jornalista estranhou o fato. Não era mais época do Exército vigiar bancos ameaçados pelas “expropriacoes” dos “novos conunistas” armados.
Ouviu, então, o insólito.
O general, meio sem jeito, pediu sigilo sobre o que iria contar. O surreal tomava forma. Moura assentiu.
E soube que, após o golpe de 1964, os protestos eram gerais. Houve a pichação de um banco da praça diante do quartel.
“Abaixo a ditadura” – alguém escreveu.
Os soldados limparam a pichação.
“Abaixo a ditadura” – na calada da noite, repetiram a façanha.
Novamente os soldados limparam a pichação.
E novamente picharam …
Perturbada, a vizinhança pediu providências ao general-comandante que colocou um sentinela cuidando da segurança do banco da praça.
Um soldado passou a cuidar, dia e noite, do banco da praça diante do quartel.
Nunca mais houve pichação.
Doze anos mais tarde, um soldado zeloso continuava desempenhando a mesma função. Batendo continência ao general-comandante do II Exército!

Palavras – chave: golpe de 64; perseguição a jornalistas; caso Herzog.

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