ANOS DE CHUMBO – O canto de fogo de Frei Tito
João Teixeira (Colunista)*
_ Caríssimos irmãos, agora vocês vão confessar comigo.
Nos porões da polícia política, o temível Dops do Largo General Osório, o delegado Raul Ferreira (“Pudim”), de missal nas mãos, olhar contrito e voz quase piedosa, vestindo uma batina de dominicano apertada no corpo rechonchudo, iniciou com estas palavras a um ritual de confissão dos primeiros freis dominicanos feitos prisioneiros políticos: Tito de Alencar Lima; João Antônio Caldas Valença; e Giorgio Calegari.
O Dops havia “grampeado” os telefones do Convento Santo Alberto Magno – na Rua Caiubi, 126, no bairro das Perdizes, em São Paulo -, invadido após consultar o comando do II Exército que não quis participar da açáo, e realizou a prisão de 15 religiosos.
O delegado “Pudim” apropriara-se da batina durante a invasão e, paramentado, deu início á encenação de mau gosto em que os freis falaram de suas relações com o ” inimigo número um da ditadura militar brasileira”, o comandante da ALN, expoente da guerrilha urbana, o mulato baiano Carlos Marighella.
A cena surreal foi descrita em detalhes pelo jornalista e escritor Percival de Souza, meu companheiro de redação no Jornal da Tarde nos anos 70 e atual apresentador da TV Record, em sua magnífica obra Autópsia do Medo – Vida e Morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury (Ed. Globo, 2000, pg 213).
Os freis confessaram um levantamento que estava sendo feito em Goiás em busca de uma “área própria” para implantação da guerrilha rural no Brasil.
Os religiosos confessaram tudo por escrito, de próprio punho, em folhas de papel, algumas perguntas feitas durante o interrogatório:
_ Quem mandou? Quem deu dinheiro para isso?
_ Carlos Marighella.
Os padres falaram como se estivessem sendo entrevistados, no depoimento bombástico, que sacudiu as relações do Clero com o regime militar, filmado e gravado com equipamento emprestado pelo jornalista Fernando Vieira de Mello, diretor da TV Record, que atendeu a um pedido do delegado Fleury.
Desta forma, confessaram as “relações estreitas, simpatizantes (de apoio), com Marighella, o novo libertador do povo brasileiro”.
Como grande escândalo, que comprovava a subversão no seio da Igreja Católica, a fita foi exibida no Palácio Episcopal, numa convenção do partido do governo militar, a Arena, levada pelo governador Abreu Sodré, para deleite dos convencionais.
Outras autoridades a assistiram em sessões especiais.
A profissão de fé do interrogatório policial teve prosseguimento em tom debochado:
_ Dominus vobiscum… renunciais ao pecado?
_ Renuncio – a resposta foi precedida por um forte tapa na cabeça do padre mais próximo do delegado-sacerdote.
_ Para viver como irmãos, renunciais a tudo que possa desunir, para que o pecado não domine sobre vós?
_ Renuncio – os três padres interrogados tiveram que responder rápido, senão apanhariam mais.
_ Renunciais (risadas) ao demônio (gargalhadas), autor e princípio do pecado?
_ Renuncio – lágrimas e constrangimento geral.
A autoridade policial, o sumo sacerdote no templo do terror, então, entrou no banheiro, encheu as mãos de água e jogou-a nos padres, imitando o ato sagrado de aspergir água benta, molhando até a batina que vestia.
_ Ó Deus todo poderoso, que nos fez renascer pela água e pelo Espírito e nos concedeu o perdão de todo pecado, guarde-nos em tua graça para a vida eterna, no Cristo Jesus, nosso Senhor. Amém. Ah!Ah!Ah!Ah!
O ritual profano e desmoralizante do inquisidor tupiniquim culminou com um chamado aos “caríssimos irmaos”, os policiais que deram sequência ao insólito interrogatório “saindo da fase psicológica para o que os policiais chamavam sadicamente de ‘paulígrafo’ (forma de arrancar confissões mediante tortura, no pau), entregando aquelas “ovelhas negras desviadas do rebanho” á sanha dos Torquemadas tropicais.
A mão pesada do Estado devastou a vida dos prisioneiros dominicanos assim como os Césares sacrificaram os fiéis ao Cristo, há mais de dois mil anos, queimando-os, crucificando-os ou transformando-os em alimento dos leões.
Frei Fernando de Brito, que trabalhava na Livraria Duas Cidades e atendera, com uma pistola engatilhada na cabeça ao telefonema de Marighella que decretara seu fim, o encontro fatal na noite de 4 de novembro de 1969, não teve um Simão Cirineu que aliviasse suas provações.
No inquérito sobre a ALN, no Dops, frei Fernando admitiu que “após a viagem de Frei Osvaldo para a Suíça, assumiu a liderança do grupo de religiosos que haviam se filiado á Ala Marighella, passando a manter contatos com o próprio líder terrorista”.
Descobriu -se que “havia um entrosamento com frei Betto (Carlos Alberto Libanio Cristo) para escoamento de elementos pertencentes á organização para fora do país, planos para arregimentação de novos elementos para a organização e preparação de uma nova mentalidade no Clero, para apoiar o movimento revolucionário” – o Conselho Permanente de Justiça Militar relatou ao Superior Tribunal Militar.
Foi nesse esquema que Joaquim Câmara Ferreira (“Toledo” ou “Velho”, substituto de Marighella na ALN após sua morte) viajou de São Paulo para Porto Alegre disfarçado de padre, hospedando-se numa igreja.
Frei Tito de Alencar Lima consumiu-se no canto de fogo revolucionário.
Frei Tito passou mais de um mês nas mãos de seu algoz, o carrasco Fleury.
“O Papa achava divertido seu próprio apelido nessa situação”.
“Obrigava o apavorado frade a beijar-lhe as mãos e, de vez em quando, a ajoelhar-se diante dele, como se fosse seu superior eclesiástico e dono de sua vida, ao definir os pontos em que a segurança nacional foi violada”.
“Chamava-o, contundentemente, de traidor da Igreja e do Brasil”.
Triste fim teve frei Tito, frágil emocionalmente para enfrentar os horrores da guerra revolucionária, a guerra suja, clandestina, devoradora de homens e de almas.
Frei Tito deixou o Dops para o Presídio Tiradentes e, de lá, para a Operação Bandeirantes (DOI), que queria, ainda, “arrancar mais serviços”.
Frei Tito havia arranjado o sítio em Ibiúna onde foi realizado o fracassado congresso da UNE ilegal, em outubro de 1968, juntamente com Therezinha Zerbini, a Burguesona, entre os presos políticos.
“Tentou matar-se cortando os pulsos com lâmina de barbear – a consciência ardia por falar sob tortura, mas falar”.
“Sabia que muitos prisioneiros haviam suportado atrocidades para não falar”.
“E falar porque o corpo humano tem limites transformou-se num devastador mea culpa para ele e para outros”.
“Levaram-no para o Hospital Militar do Cambuci, de onde Lamarca havia apropriado armas”.
“Gostaria de resistir, mas não aguentou”.
O carrasco Fleury o advertiu antes de o transferir:
“Se você não soube ou não quis mostrar o caminho do Céu, agora vai saber onde fica o Inferno”.
Frei Tito ingrojetou a figura do torturador em sua mente em desequilíbrio e sofria delírios, persecutório, via Fleury atrás dele em toda parte.
Exilado no sequestro do embaixador Bucher, em dezembro de 1970, esteve no Chile, na Itália e, por fim na França, onde ficou no convento de Ville Franche-sur-Saone.
Frei Tito enforcou-se numa árvore.
Enterraram-no no cemitério dos dominicanos perto de Lyon.
Nove anos depois, seus despojos foram trazidos para o Brasil é finalmente depositados em sua cidade natal, Fortale,a.
O radicalismo da esquerda revolucionária jamais perdoou os dominicanos – principalmente as “iscas” da polícia na emboscada a Marighella, os freis Fernando e Ivo – pelo papel que a História lhes reservou.
Palavras-chave: anos de chumbo; o canto de fogo de Frei Tito.
*João Teixeira, jornalista e escritor, integra o Conselho Editorial do Jornal Contratempo.