Anos de chumbo – O expurgo nos quartéis – PARTE I
João Teixeira
A estatística do expurgo ocorrido nos quartéis, desfechado o golpe civil-militar de 1964, demonstra, em primeiro lugar, a urgente necessidade de estudos acadêmicos e dos cientistas sociais em torna da corporação ainda desconhecida, sustentáculo da elite do poder no Brasil, as Forças Armadas.
Os fardados, profissionais das armas, foram, de longe, os mais atingidos pelo regime dos generais.
Oficialmente, segundo dados disponíveis, 6.591 militares, de soldados a generais, foram excluídos das Forças Armadas após 1964.
Os fardados legalistas, nacionalistas, socialistas, brizolistas, comunistas ou adeptos de qualquer ideologia progressista foram duramente punidos.
O jornalista Ruy Mesquita, diretor do jornal “O Estado de São Paulo” escreveu: “o ‘produto’ do trabalho da Comissão Geral de Inquérito (CGI), onde os militares interrogavam pessoas que achavam que tinham culpa no cartório, pela deteriorizacao do regime democrático principalmente por motivo de corrupção, encerrada em 15 de junho de 1964, foi o seguinte: 299 pessoas com os direitos políticos suspensos por 10 anos, incluindo 5 governadores, 11 prefeitos, 51 deputados federais e 2 senadores (…) havia também 46 oficiais das Forças Armadas que foram transferidos para a reserva com todas as regalias proporcionadas pelos regulamentos militares. Nenhuma prisão sem culpa formada. Era para ser o ponto final. Durou 21 anos”.
O fato é que o número de fardados punidos foi infinitamente superior ao de políticos, sindicalistas e trabalhadores grevistas, estudantes e professores, jornalistas e escritores, cientistas, artistas, religiosos e liberais, os principais atingidos pelos atos de exceção.
Os protagonistas do golpe que está completando 58 anos neste dia 31 de março de 2022, a quartelada de 1 de abril segundo seus adversários, trataram de arrumar a própria casa, após terem rasgado a Constituição de 1946 e destruído o projeto nacional-reformista do presidente deposto, João Goulart (Jango).
O dia em que os tanques desfilaram pelas ruas, sob o entusiástico aplauso de amplos setores da população, principalmente da classe média manipulada pela propaganda anticomunista e contra a corrupção, completou sua obra neste século XXI com o domínio do capital monopolista hegemônico global.
O “Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964”, organizado pelo Instituto de Estudo da Violência do Estado (IEVE) e Grupo Tortura Nunca Mais (Rj/PE), aponta, oficialmente, 30 casos de militares perseguidos, presos, torturados e mortos ou “desaparecidos” entre 1964 e 1975.
A maioria destes casos envolveu-se na resistência armada contra o regime militar.
Envolvem praticamente todas as patentes – soldados, cabos, sargentos, tenentes, capitães, maiores e generais – do Exército, Marinha, Aeronáutica, Fuzileiros Navais, Polícias Militares de SP/RJ, CPOR, e a Brigada Militar (RS).
O ex-preso político Genivaldo Matias (DOI e Presídio do Hipódromo) está no processo que envolveu mais de 60 soldados, cabos e sargentos, membros da Associação de Cabos e Sargentos de São Paulo, uma das principais bases de apoio ao PCB, desde o tenentismo dos anos 30.
A PM/SP processou 38 praças e 5 oficiais por motivação política.
O caso do coronel Vicente Silvestre – padrinho de casamento de Genivaldo Matias – é emblemático do terror do Estado naqueles tempos.
Autor do livro “Guarda Civil de São Paulo – Militarização no Período Militar”, o coronel Silvestre foi preso em sua casa, no bairro da Previdência, na zona oeste, no dia 9 de julho de 1975.
Sofreu tortura no QG e levado ao DOI, no dia seguinte, sob a sanha de um certo japonês e o “Dr. Douglas”, que lhe deram um macacão encardido do Exército para vestir.
“Isto simbolizou a imagem encardida do Exército, que ultrajou seu passado de brilho e glórias” – afirmou o ex-prisioneiro de sua corporação.
Libertado no dia 2 de outubro, o coronel Silvestre não teve direito á defesa no Conselho de Justificação, em 4 dias, conforme denúncia da Justiça Militar.
Condenado a 1 ano de prisão, recorreu ao STM, em Brasília, solicitando a anulação do ato de expulsão.
“Foi um processo criminoso, sem base legal”.
A PM não achou provas de delito para sua expulsão, mas mesmo assim foi expulso e transferido para a reserva.
Seu processo sumiu – e o de indenização indeferido pela Comissão de Anistia.
Em 2007, aos 79 anos, o coronel Silvestre estava exaurido, após percorrer por 5 anos os gabinetes oficiais.
“Estou sem forças para lutar”.
O tenente-coronel José Ferreira de Almeida também foi preso no dia 7 de julho de 1975. Na ocasião, 43 militares da PM, de segundo-tenente a coronel, foram submetidos ao Conselho de Disciplina da PM/SP e expulsos sumariamente, em 24 horas.
O tenente Almeida morreu na tortura do DOI, 3 meses antes do assassinato do jornalista Vlado Herzog, em 23 de outubro de 1975.
Não foi o único a morrer na tortura. O coronel reformado da PM José Maximiano de Andrade Neto, acusado de pertencer ao PCB, segundo o testemunho de Inês de Castro no I Congresso Nacional de Anistia, faleceu após ter sido libertado, por causa da tortura. Sofreu enfarte do miocárdio e morreu no Clinicor, de Campinas.
Vanio José de Matos, ex-capitao da PM/SP, jornalista formado pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero- onde o autor destas linhas se graduou – trabalhou na “Folha de S. Paulo”.
Vanio era um dos principais contatos do capitão Carlos Lamarca, comandante da guerrilha, na milícia paulista.
Orientava a VPR sobre o clima de insatisfação na tropa, por causa dos baixos soldos e as dificuldades no trabalho.
Preso pela Oban, em 1970, foi expulso da PM e banido para o Chile em 1971, no sequestro do embaixador suíço.
Vanio morreu assassinado no Estádio Nacional de Santiago do Chile, no golpe de Pinochet, sob tortura. Oficialmente, morreu de “peritonite aguda”.
O expurgo nos quartéis é tema vasto e complexo, impossível de ser sintetizado em poucas linhas. Continuaremos no próximo artigo.
Palavras-chave: golpe de 31 de março; militares perseguidos.