As meninas de Ibiúna – Parte IV – Final


João Teixeira


“Soldado também é povo”.
O refrão entoado pelos estudantes nas passeatas demonstrou seu efeito prático no Presídio Tiradentes.
A prisão em massa de centenas de estudantes universitários, naquele 12 de outubro de 1968, quando ruiu o congresso ilegal da UNE em Ibiúna, um dia fatídico para o movimento social e estudantil, exigiu uma frota de ônibus para o transporte da moçada e esforço inaudito por parte dos órgãos de segurança.
“Os dois pátios do Presídio Tiradentes ficaram lotados de estudantes presos, os presos políticos da ditadura” – conta a policial feminina aposentada Silvia Colhado, á época tenente da Polícia Militar, hoje com 84 anos, pintora de renome em Ourinhos.
Silvia é contemporânea de colegas que honram o nome da corporação militar.
A triagem do Dops levou alguns dias, e os estudantes presos foram obrigados a esperar até tarde para serem recolhidos ás celas.
As policiais femininas, substitutas dos carcereiros dos correcionais, vigiavam as meninas presas em Ibiúna nas celas, enquanto os homens da Guarda Civil cuidavam da ala masculina.
Na “cheia”, os dois pavilhões do presídio abrigavam 400 presos políticos, e os presos comuns desocuparam o espaço para dar lugar áqueles.
Nuvens escuras cobriam o horizonte político.
Renée de Carvalho, companheira de Apolônio de Carvalho, ambos comunistas e membros da Resistência Francesa contra o nazifascismo na II Guerra Mundial (1939-45), registrou: “antes do AI-5, com todo perigo que havia, o ambiente era diferente, havia atividades culturais, como o Teatro Opinião, e alguns canais de expressão. O Cabouço em março de 1968; em 26 de junho a Passeata dos 100 Mil; o caso dos estudantes da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. As pessoas se encontravam, discutiam, depois foi a rotina do desespero”.
A época das prisões: a “rotina do desespero”.
No episódio de Ibiúna, o protagonismo feminino que assombrou as autoridades, sensível, solidário e fraterno, superou as barreiras ideológicas.
As mulheres levantaram bem alto a bandeira do humanismo solidário.
O diretor do Presídio Tiradentes, delegado Olintho Denardi, tentou ignorar o direito universal de separar os presos políticos dos presos comuns, e deu-se mal.
A autoridade queria recolher os estudantes presos sem ao menos desinfetar as celas imundas.
As policiais femininas, num exemplo de consciência e altruísmo sem precedentes, reagiram á discriminação do superior hierárquico, notando de imediato a aberração que seria misturar os diligentes e idealistas estudantes de classe média, gente fina e estudada, os futuros dirigentes do País, á ralé de desocupados, ladrões e putas que todos os dias, ás seis da tarde, eram despejados dos camburoes no pátio do Tiradentes.
Silvia Colhado rende homenagens a uma colega de farda já falecida, a policial feminina Francisca Silvana Machado de Carvalho, a Chiquinha, irmã de um bispo da Igreja católica, que contestou o autoritarismo do corrupto diretor do Tiradentes, o Dr. Denardi.
Mesmo ameaçada de ser punida por insubordinação, que poderia levá-la á prisão, resistiu e venceu a parada.
Desta forma, graças á coragem e ousadia da policial Chiquinha, ao invés de revólveres, cassetetes e metralhadoras, os servidores públicos muniram-se se água, sabão e creolina na faxina das celas, livrando os estudantes da companhia das traças, percevejos, baratas e outros bichos.
“Nunca vi o pessoal do presídio trabalhar tanto na vida” – diz Silvia.
Na “rotina do desespero”, Renée de Carvalho revela que ajudou a formar, no Rio de Janeiro, as “Mães da Vila Militar”, congênere das “Avós da Praça de Maio”, que na ditadura militar argentina (1976/83) buscava filhos e netos desaparecidos.
Em São Paulo, no Presídio Tiradentes, antigo depósito de escravos construído em 1850 e destruído em 1973 para dar lugar ao metrô, o exemplo da policial Chiquinha, consciente e cidada, fez escola.
O Tiradentes foi palco de cenas comoventes entre as carcereiras e as presas políticas.
“Eu morria de pena das meninas”, confessa Silvia, “achava aquilo tudo uma desumanidade”.
As meninas de Ibiúna mandavam bilhetes para os meninos perguntando se estava tudo bem. Estava.
As policiais ás vezes deixavam que se vissem, “eu ia junto e vigiava”, atalha Silvia.
“Eles não diziam nada, só se abraçavam e beijavam”.
A policial admirava o trabalho do Dr. Madeira (Antonio Carlos), o médico que montou o hospital da ALN, que utilizava a hipnose no tratamento dos presos comuns.
O Dr. Madeira ganhou um bolo bem feito de presente no dia do seu aniversário.
A Rua Maria Antônia tornou-se sombria e melancólica após a violenta investida dos órgãos de segurança.
João Carlos Bozzo, o Midnight, memória do pedaço, lembra das pessoas assustadas, com medo de serem presas, de sumirem com o tantos outros.
A paranoia era real.
“Andou sumindo uma porrada de gente por aqui”.
Os homens estavam pegando duro, de moral alta, depois da execução de Marighella.
O tempo andava fechado..
“Era lindo, a gente era mais puro, mais unido”, Midnight afirma.
Silvia Colhado: “Tenho saudades daquele tempo. A gente sofria, o trabalho era difícil, mas valia a ajuda ao próximo”.

Palavras-chaves: congresso de Ibiúna, movimento estudantil, mulheres que foram á luta armada.

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