Coluna: Luiz Bosco – As exigências do trabalho capitalista agora se voltam à sua personalidade

O trabalho no capitalismo toma o melhor de nosso tempo e de nossas forças. Passamos ao menos oito horas por dia, cinco ou seis dias por semana, dedicados a uma pequena porção de atividades satisfatórias e a um considerável número de atividades inúteis. Nossa vida é vampirizada por uma infinidade de papéis a preencher, coisas a discutir, espaços a percorrer, ônibus por pegar, ponto a bater, entremeados de momentos em que realmente nos dedicamos a atividades produtivas, sobre as quais temos controle e autêntica autonomia para desenvolvê-las.

De maneira geral, lidamos com isso mandando tudo à forra quando batemos o ponto da saída. É a “hora feliz” no bar, o reencontro com a família, a ida para a universidade (que pode ser uma repetição da rotina de trabalho, mas tem suas delícias). Quando chega o dia de folga então, a vontade é de se acabar: “sextou”, partiu balada; comer, dormir e assistir séries; ir para o sítio ou o que possa nos manter longe de qualquer lembrança do batente.

Em muitas profissões ainda é possível essa distinção nítida entre mundo do trabalho e mundo da vida. Nossa existência é toda modelada para se dedicar ao labor, mas construímos um distanciamento entre “firma” e “casa” para termos espaço para respirar e recompor as energias que gastaremos na próxima jornada de trabalho.

Trabalhamos para nos mantermos minimamente saudáveis para voltarmos a trabalhar.

Escrevo esse texto para abordar algumas mudanças que têm se produzido há décadas nessa lógica predominante desde as revoluções industriais. Provavelmente tenha começado entre a classe executiva, passado pelos setores cujas ferramentas são intelectuais, e hoje parece chegar até a certas funções “braçais”, como empacotadores em supermercado.

Comecemos por essa divisão entre vida e trabalho. Não é de hoje que se debate a crescente exigência por “formação continuada” e “capacitação” que toma os dias de folga dos trabalhadores. É preciso estar cada vez melhor preparado para “os desafios do mercado de trabalho”, para “as exigências modernas” etc.

Esses imperativos se aprofundaram e tomaram conta de todo nosso tempo livre. O puro e simples ócio e o passatempo devem se tornar eventos em que “potencializamos nossas capacidades”. A ida ao barzinho ou ao clube é oportunidade para “fazer network”. A leitura de um livro, uma viagem, ou um reles café da manhã, tudo se torna oportunidade para divulgarmos nas redes sociais e “agregarmos valor a nossa imagem”. Nosso dia a dia fica tomado por atividades que fazemos não para nosso deleite, mas para “otimizarmos nossa performance”.

Isso sem falar no escritório que carregamos o tempo todo conosco: o celular, que agora é um espertofone e nos obriga a estarmos permanentemente ligados ao mundo do trabalho, respondendo e-mails, disponíveis no WhatsApp e fazendo propaganda da empresa em que trabalhamos pelo Facebook e Instagram.

Como a sede do vampiro capitalista é infinita, isso não basta. É preciso ser feliz, estar disponível a qualquer momento e lugar com um sorriso no rosto, nunca aparentar cansaço, ter pensamento ágil, ser fitness, ter pele bonita (seja lá o que isso for), agir como um apresentador de auditório.

Palavras completamente vazias se tornam o imperativo do EU espoliado para o trabalho. Proatividade, por exemplo. Imagino alguém à beira de uma crise de ansiedade, correndo o tempo todo, fazendo coisas (mesmo quando completamente desnecessário), sempre preocupado com a possibilidade de existirem problemas esperando ser resolvidos.

A sua personalidade, seus sentimentos, seus desejos, tudo deve ser entregue, com um largo sorriso endireitado por aparelhos ortodônticos, às mãos da exploração do trabalho capitalista. A você resta uma existência alienada de si mesmo, pois nem o seu EU lhe pertence mais.

Luiz Bosco Sardinha Machado Jr. 
Mestre e Doutor em Psicologia pela Unesp
Especialista em Psicologia Escolar e Educacional pelo CFP

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