Dia de cão na redação
Por João Teixeira
A produção jornalística sempre foi uma Caixa de Pandora para os leigos.
Após o estúpido vandalismo que destruiu a redação de O Jornal, do Rio de Janeiro, nos anos 50, o jornalista, compositor (“Ninguém me ama”) e cronista Antônio Maria Araújo de Morais (1921/1964) definiu a barbárie de forma magistral:
_ Que bobos! Eles pensam que escrevemos com as mãos.
O horror á independência e ao espírito crítico, em favor do servilismo, o mercenarismo e a vassalagem, que, com raras exceções, predomina entre políticos civis e caudilhescos, intelectuais, acadêmicos e liberais, empresários, religiosos e militares, marca a história da Imprensa no Brasil.
A notável expansão do negócio das assessorias de Imprensa no mercado da comunicação, intermediando as relações entre os profissionais e as instituições e os veículos de comunicação, ocorreu em função deste vácuo cognitivo.
As assessorias abriram a Caixa de Pandora da Imprensa para os leigos – quase toda a sociedade.
Voltaremos ao assunto.
Embora as Forças Armadas – Exército á frente – não sejam monolíticas e comportem vários matizes ideológicos, nelas também grassa ignorância crassa e profunda sobre a missão – os “olhos, ouvidos e a boca da sociedade”, segundo Ruy Barbosa – e o labor jornalístico.
Nos anos 70, em plena etapa mecanográfica industrial (tempo de máquinas de escrever, telexes, teletipos, linotipos, PBX e telefones fixos), os militares no poder também boiavam quanto á fábrica de notícias, ignorando tudo sobre cargos e funções na empresa jornalística.
Para os oficiais fardados, patrões, chefes de redação e de reportagem, revisores de textos (copidesques), repórteres e fotógrafos eram tudo farinha do mesmo saco, uns andróides suspeitos – chamavam-nos de “melancias”, “verdes por fora e vermelhos por dentro” – inimigos do regime.
A redação da sucursal paulista do jornal carioca O Globo, no décimo nono andar do Edifício Zarvos, no centro da cidade, pulsava no ritmo do jornal que oferecia a melhor cobertura nacional, do Oiapoque ao Chuí, reunindo uma plêiade de talentos sob a competente batuta do chefe Moura Reis.
Otávio Bueno da Fonseca, o “Sarrafo” pé-de-boi de Piraju, falecido mês passado em Ourinhos, chefe de reportagem; William Waack; Renato Lombardi; Cándido Garcia; Roberto Pinto; Vera Miranda; Maria Lúcia Carneiro: Kazumi Kusano; Enéas Macedo; Antônio Ribeiro; Efigênia Menna Barreto; Fanny Zigband; Giulia do Vizia; Odir Cunha; Araquém Alcantara; Chico Lelis, Odair Pimentel, Edenilton Lampião e este que vos escreve, escusando-me de mencionar tantos outros profissionais de valor.
O fato é que, antes do assassinato sob tortura de Vlado Herzog, em 23 de outubro de 1975, a militância da esquerda armada exibia as fraturas da prática deletéria de recrutar jovens estudantes aguerridos e idealistas, espontaneístas e dotados de fervor messiánico (“dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria”) na aventura da resistência armada condenada pelo PCB.
Surgiam as tristes figuras dos “arrependidos”, os “desbundados” no jargão da época, que eram levados á TV para renegar a luta armada e louvar os feitos do regime militar.
Conta Moura Reis:
__Nos anos 70, quando os subversivos faziam retratacoes públicas, aconteceu o incidente mais grave em O Globo.
Moura um dia foi avisado bem cedo que o II Exército iria distribuir á Imprensa um documento público sobre um preso político arrependido.
Nessas ocasiões, os militares faziam forte pressão para que o documento fosse publicado na íntegra, sem cortes.
Daquela vez, contudo, por azar, houve uma sucessão de erros operacionais na expedição e no aproveitamento editorial do documento oficial.
As armadilhas na linha de produção.
Um procedimento burocrático tomou rumos inesperados e a redação virou um inferno.
Como já explicamos, a redação ficava no centro de São Paulo, a poucos quilómetros do QG. Os militares, porém, enviaram o documento em nome do dono do jornal, o Dr. Roberto Marinho, na sede do jornal, no Rio.
O funcionário da expedição da sucursal colocou o envelope no malote que fez longa viagem pela via Dutra, de caminhão.
Estava armada a confusão. Ninguém achou o material na sucursal e foi um pandemônio, só á noite o equívoco foi esclarecido.
A encrenca só estava começando.
O II Exército, então, mandou outro documento á sucursal de O Globo, justamente na hora do agito de fechamento da edição.
Era um envelope enorme, manuscrito, Moura Reis nunca esqueceu disso.
__ Foi um dia de cão. Os dois digitadores de telex trabalharam a todo vapor, não podíamos atrasar o fechamento do jornal, e foi exatamente o que aconteceu.
Naquele dia O Globo fechou a uma hora da manhá.
Aí veio o pior da história.
Moura, pessoalmente, havia preparado o lead (abertura) da matéria, conservando a íntegra do texto.
Um major furioso o acordou em casa no dia seguinte.
O jornal publicou que o prisioneiro havia sofrido violencias e constrangimentos na prisão, o que havia acontecido?!
__Disse ao militar que estava apurando responsabilidades e que haveria punições. Corri para a redação sem tomar café. Eu nem sabia onde havia ocorrido o erro, se na transmissão de São Paulo ou na recepção do material, no Rio.
Aflito, o chefe checou o material transmitido …estava perfeito.
Verificou na matriz e o mistério foi esclarecido.
Uma das frases feitas do documento militar afirmava, logicamente, que “o prisioneiro não tinha sofrido violencias e constrangimentos na prisão”.
A fita do telex estava gasta e a cópia havia chegado meio esbranquecida, quase ilegível, no Rio.
O texto precisou ser redatilografado. O copydesk suprimiu o “não” do texto e deu-se o desastre.
O Globo circulou no dia seguinte com a nota do II Exército afirmando que o prisioneiro havia sofrido violencias.
Naquele Deus-nos-acuda, a redação teve seu dia de cão.
O general Ednardo passou o dia furioso, proferindo cobras e lagartos, bradava que aquilo era sabotagem, “coisa de conunista”, achava que havia conspiração comunista infiltrada em O Globo sabotando a Revolução de 1964!
O chefe de redação foi obrigado a dar mil explicações aos militares que estavam irredutíveis.
O general Ednardo D’ávila Mello, daquela vez, não aceitou seus argumentos.
Na edição do dia seguinte, O Globo republicou o texto, na íntegra.
Sobrou para o copy, que acabou demitido, esse não deu para segurar.
Foi um dia infernal, nosso herói Moura Reis quase perdeu a cabeça e esteve a ponto de fazer uma bobagem por sua conta e risco.
No final, ficou com a impressão de que também pediram sua cabeça, mas manteve o cargo. Escrever era perigoso.
Palavras-chave: anos de chumbo; imprensa perseguida.