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O companheiro traidor – Parte II

O companheiro traidor – Parte II

Por João Teixeira

“Ou colabora ou morre!”.
A sentença do Cabo Anselmo foi proferida pelo delegado Sérgio Fleury na prisão do Dops, após uma semana de tortura.
“Isso me foi dito diretamente pelo delegado Fleury. Eu não estava absolutamente de acordo com aquele sistema repressivo, mas eu tinha consciência, do meu lado, de que participava de uma coisa que poderia se tornar uma guerra civil. Eu já não acreditava nisso, nao”.
Essa versão dos porões da guerra revolucionária, clandestina, foi narrada de viva voz por Anselmo, o policial agente duplo, responsável por dezenas de mortes nos anos de chumbo, para espanto de seus entrevistadores, no “Canal Livre”, da TV Bandeirantes, em agosto de 2009.
Foi o maior “furo” de reportagem daquela época.
O programa, apresentado por Boris Casoy, na bancada de jornalistas tinha Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes, e Antônio Teles.
Cabo Anselmo avançou na narrativa: “…naquele momento, eu me perguntei, será que o povo brasileiro, esse que está aí trabalhando, quer uma luta armada para instituir um movimento comunista no Brasil?”
“…quando eu fui preso, ou serve ao Estado ou morre”.
Os contemporáneos do companheiro traidor das esquerdas dividiam suas opiniões sobre ele.
Pedro Viegas, ex-marinheiro, guerrilheiro exilado, jornalista e escritor, conheceu Anselmo na presidência da Associação de Marinheiros, em 1964.
Viegas conta: “as autoridades haviam proibido as comemorações de segundo aniversário da Associação, uma festa para nós”.
A Revolta dos Marinheiros tomou conta das ruas, agitou o Alto-comando Militar e foi duramente reprimido. 963 marujos e fuzileiros navais foram expulsos da Marinha por insubordinação e subversão, perseguidos, presos e julgados.
Viegas foi condenado a 3 anos de prisão por sua participação na rebelião no Sindicato dos Metalúrgicos. Era o editor do jornal “O fusinauta”, influente no meio.
“Eu e minha mulher íamos levar comida para Anselmo quando ele estava preso no Alto da Boa Vista”.
“Para mim foi uma surpresa a delação, ele era uma pessoa doce, educada, inteligente”.
No Dops, diante do carrasco Fleury, Anselmo, segundo ele mesmo, pensou:
“…É evidente que não, o povo brasileiro não queria isso. Eu estava lidando com pessoas armadas para matar e morrer. O que era melhor? Aquela ameaça que pairava, de uma guerra civil no Brasil, que poderia estar como a Colômbia até hoje”.
O revolucionário transformava-se em policial – na hipótese de que já não era.
O Cabo Anselmo revelou a infiltração policial nas organizações armadas.
“Quando eu fui preso (1971), o Dops de SP tinha muitos agentes infiltrados nas organizações armadas, eles sabiam muito mais das organizações de esquerda do que a própria VPR, muito mais do que eu sabia, ali, naquele instante”.
A infiltração, desde as guerras da Antiguidade, foi essencial para os generais brasileiros na Guerra Revolucionária.
Em “Injustiçados” (Cia. Das Letras, 2021), Lucas Ferraz escreveu: “verificamos que o trabalho (combate á subversão) teria sucesso somente na base das infiltrações” – declarou o coronel Ciro Guedes Etchegoyen, instrutor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército nos anos 1960, chefe de contrainformacoes do CIE, e comandante da “Casa da Morte”, em Petrópolis, um centro clandestino do Exército para torturar e matar guerrilheiros.
“A teia de infiltrados – formada por espiões distintos, dos militantes ‘virados’ na tortura, que passavam a colaborar, aos militares, policiais e civis infiltrados, quase todos remunerados pelo serviço- operou, sem exceção, dentro de todos os grupos e partidos de esquerda, mesmo nos contrários á luta armada, como o PCB”.
“Havia espiões nos lugares mais insuspeitos. Em Cuba, um dos instrutores do curso (de guerrilha) era informante da CIA e compartilhava dados com codinomes e aproveitamento dos brasileiros para os oficiais do Exercito” – prosseguiu Lucas Ferraz.
Neste contexto, as digitais de Anselmo estão no ‘desaparecimento” de Heleni Guariba, Paulo de Tarso Celestino, Luís Antônio de Almeida, o marinheiro “Moises”, entre outros nomes de militantes que o encontraram antes de sumir
O companheiro traidor tinha nível cultural acima da média e relacionava-se bem com os intelectuais ativistas do PCB.
Um dirigente da Ala Vermelha do PC do B, recém chegado da China, o conheceu na UNE, no RJ, e conta: “Era um verdadeiro mala e conversava muito com os dramaturgos Chico de Assis e Vianinha. Eu nem chegava perto”.
“Todo militante do Partido já sabia que ele era polícia; os sem-partido, como acontece hoje, apoiavam tudo, na inocéncia”.
Anselmo, então, já era policial em 1964 ou converteu -se preso, em 1971?
“Não existe ex-puta ou ex-policial, não sejamos inocentes em acreditar nisso”.
Em 2009, aos 67 anos, Anselmo esteve na Oitava Vara da Justiça Federal para realizar um laudo pericial papiloscopico para provar sua verdadeira identidade.
O jornalista Lucas Ferraz o encontrou com a aparência frágil, coxeando de uma das pernas e reclamando de dores no estômago e de uma hérnia duodenal.
Anselmo usava uma identidade falsa desde a década de 1980, fornecida pelo delegado Fleury, que também pagou sua operação plástica no Hospital Albert Einstein.
Sua certidão de nascimento, registrada num cartório de Itaporanga d’Ajuda, no interior de Sergipe, onde nasceu, fora destruída há décadas num incêndio.
Anselmo pleiteava um pedido de anistia política e indenização na Comissão de Anistia do governo federal.
Seu processo ficou cinco anos parado. Em 2912, o Ministério da Justiça negou seu pedido, ante as evidências que indicavam sua colaboração com o regime, antes do golpe de 64.
Chizuo Ozava (Mário Japa), ex-dirigente da VPR, reconhece a responsabilidade de Anselmo no aniquilamento da organização. Mas relativiza:
“Ninguém foi mais arrebenta do pela vida é pela repressão do que Anselmo. Perdeu a dignidade, a identidade, tudo”.
De fato, Anselmo reconheceu na TV: “eu tenho medo de morrer sem o meu nome de batismo, José Anselmo. Eu tenho medo de morrer sem ter a identidade militar devolvida. Eu fui cassado, anistiado passei por todos esses processos”.
“Muito bem. Servi contra o Estado, servi á polícia do Estado, e depois fiquei ao Deus-dará”.
Em seu livro de memórias, o companheiro traidor escreveu que “traição era uma palavra “Muito dura” para ele. Mas sabia que passaria a ser o Judas da história.
Perdeu a alma e a luta contra a burocracia.
Morreu de mal súbito com o nome falso de Alexandre da Silva Montenegro, segundo o serviço funerário de Jundiaí.

Palavras-chave: luta armada, José Anselmo dos Santos, anistia.

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