O lucro com as mortes em um Estado Pandêmico

Por Luiz Bosco Sardinha Machado Jr.

Já são mais de duzentas e cinquenta mil mortes pelo coronavírus no Brasil, sem contarmos as estimativas de subnotificação, que podem elevar em 50% esse número. Chegamos ao pico de mais de 1700 mortes em um dia. O que leva o governo federal a permanecer parado, com o Presidente criticando o uso de máscaras e ameaçando aos Estados que fizerem “lockdown” (fechamento de atividades)? Quais as motivações por trás do fechamento imposto por João Dória, governador de São Paulo, mantendo escolas com aulas presenciais? Tentaremos abordar alguns pontos que nos parecem importantes para pensarmos essas questões, sem tentar esgotar o assunto. Pensamos estar diante de um funcionamento do Estado que se vale da pandemia para atingir objetivos que aumentem a desigualdade e, sistematicamente, atinjam a população pobre.

Lembremos que, inicialmente, nos idos de março de 2020, o receio era da instauração de um Estado médico-policialesco. Contudo precisamos pensar para além de um Estado que coage e nos aproximarmos de uma compreensão da sofisticada relação entre o cerceamento “duro”, pela força estatal tradicional, e o uso estratégico da situação de pandemia.

É um Estado de Exceção

Temos um Estado de Exceção (1) quando a suspensão de direitos e da “ordem democrática” se dá diante de um inimigo comum ou de uma situação de confronto (não importa se estes são imaginários, como no caso da ameaça comunista ao Brasil). Em aparente paradoxo, a situação de Exceção, como em ditaduras militares, intervenções externas ou estado de sítio, serviria para garantir o Estado de Direito, aquele em que as garantias legais são asseguradas.

A possibilidade da suspensão do Direito para que ele prevaleça diz respeito a um mecanismo de poder que visa assegurar a manutenção dos grupos que chegaram a ele. Na sociedade capitalista, estamos falando da classe burguesa, que não se trata do dono da padaria, do médico e do corretor de seguros. É constituída por aqueles que detém terras, indústrias, minérios, bancos; que vivem de especulações diversas; esses realmente possuem o poder econômico e político.

Se ainda não funciona de maneira totalitária como no nazi-fascismo, permite a co-existência de medidas de exceção junto ao Estado de Direito. Este segue frágil, podendo ser ignorado quando os interesses da “elite do atraso” (2) o exigem, como no julgamento do ex-presidente Lula, nas tragédias envolvendo a megaempresa Vale, entre outros inúmeros exemplos que poderíamos dar.

Precisamos lembrar da mobilização do aparato jurídico, juntamente com a grande mídia, entronizada como “quarto poder”, promovendo tribunais de exceção contra o Partido dos Trabalhadores e outros grupos de esquerda desde o golpe de Estado contra Dilma Roussef, ao menos. Junte-se a isso a violência policial contra a população pobre, cujas origens são longínquas e trazem elementos de uma estrutura escravocrata, como a completa sujeição do trabalhador e o racismo.

Parte importante do bolsonarismo é calcada em uma luta quixotesca contra o petismo; aliás, a extrema-direita brasileira é um vazio de ideias de tal forma que, sem o fantasma do PT, simplesmente não se sustenta. Para fazer frente ao que consideram como ameaça, toda a inépcia do governo Bolsonaro parece aceitável para o grande empresariado e para parte da imprensa. Essa postura se junta aos simulacros de escândalos, em que palavras ou atitudes de um Presidente da República inconsequente, para dizer o mínimo,  atraem toda a atenção da esfera pública, enquanto a dilapidação das riquezas nacionais e das políticas públicas segue a todo vapor.

A ameaça da pandemia corre em paralelo, como um detalhe incômodo e sem maior importãncia. Não é vista como verdadeira ameaça, sendo sua mortalidade menosprezada ou até mesmo negada. Entretanto, tudo isso é fachada. A fanfarronice de quem não liga para o que está acontecendo dissimula uma série de estratégias.

É a negação da gravidade da pandemia

Estamos diante de um Estado que não optou por tomar o coronavírus como inimigo público. Isso também seria conveniente para a instauração de um Estado mais policialesco do que já é. Essa possibilidade foi levantada quando da instauração de acompanhamento do deslocamento das pessoas através dos aparelhos celulares, para averiguar a taxa de adesão ao isolamento, e não pode ser de todo abandonada. Quando for considerada conveniente, podemos estar certos de que ela será levada à sério.

A opção foi por negar a gravidade da pandemia e se aproveitar da insegurança e desinformação instauradas.

A manutenção da situação de pandemia atende a interesses econômicos diversos, existentes no complexo mosaico da economia brasileira e das relações entre os grupos que compõem a elite. Atende também a interesses de corporações e países estrangeiros, que querem explorar tanto commodities, quanto a privatização e a exploração do vazio deixado pelo desmonte de políticas sociais. Basta observamos o quanto os grandes bancos lucraram (e demitiram) ao longo de 2020; também é preciso atentar para a corrida por privatizações, que ameaça instituições sólidas, como a Petrobrás e os Correios.

Os elos mais fracos da corrente cedem frente à força dos mais fortes. Pequenas e médias empresas sofrem com o impacto da crise e abrem mais espaço ainda para as grandes e megacorporações, que, com seu enorme poder econômico e político, não se apequenam com a situação. Pelo contrário, dela se valem para se agigantar ainda mais, engolindo as menores que sucumbem e ampliando seu poder monopolista sobre o mercado.

Trabalhadores se vêem cada vez mais distantes de qualquer ideia de um emprego estável. Com a continuidade da pandemia, é possível ficar sem trabalho a qualquer momento e está dada toda justificativa necessária para isso, bem como para redução de encargos, ou a simples contratação totalmente à margem da lei.

O desemprego chega a quinze milhões de pessoas, em números oficiais; sem falar na informalidade, que beira à metade da população economicamente ativa. Com isso, o mercado faz o que quiser com as condições de trabalho que oferece. A população, meramente preocupada em sobreviver, submete-se sem forças para questionar, pois quem questiona, pode perder seu precioso posto de trabalho.

Agora deve se sujeitar a trabalhar sem garantias, sem direitos e sob o risco de contrair uma doença mortal. É uma situação de aprofundamento veloz da desigualdade social no Brasil. Está instalada uma dinâmica em que a novidade é o controle das populações empobrecidas através da morte silenciosa e barata pelo vírus. Temos uma limpeza étnica e social em curso, sem necessidade de ampliação de aparatos bélicos ou de segurança.

É uma necropolítica

Trata-se de uma política de morte, em que a racionalidade se coloca a favor da eliminação de uma população. O conceito de necropolítica articula a violência estatal e o estrangulamento de uma população, restringindo sua circulação, sua capacidade de autonomia econômica e de autoafirmação, bem como a destruição da infraestrutura social e urbana. Uma das consequências disso é o fortalecimento de uma “economia de milícias”, nas palavras de Achille Mbembe (3).

As populações periféricas já viviam uma realidade de infraestrutura precária, com a quase total ausência do Estado. Políticas públicas de Educação, Assistência Social e Saúde melhoraram ao longo dos governos Lula e Dilma, mas não foram suficientes para uma redução perene do fosso social entre a “elite do atraso”, a “abominação da classe média”, nos dizeres de Marilena Chauí (4), e o grande número de famílias pobres. Milícias e “comandos” do crime ocupam cada vez mais as periferias da cidade, institucionalizando a economia informal; esta, sendo estratégia tradicional de sobrevivência, foge do Estado, mas não foge da coação dos poderes paralelos.

Temos uma política de morte que se mantém historicamente no Brasil, com estratégias sutis, inseridas no cotidiano, em relação às quais o uso do poderio das armas vem para estabelecer o contraste entre pequenas violências banalizadas e aqueles momentos em que o poder se exerce de maneira crua.

Na pandemia, o risco é morrer na labuta cotidiana, ou assumir a possibilidade de ser uma vítima da violência estatal. Muitas vezes, essa escolha não existe. A população pobre se submete a transporte público lotado, tem menos acesso a estratégias de cuidado de saúde, como serviços gratuitos de saúde, ampla oferta de saneamento básico e alimentação equilibrada. Trabalha em condições distantes das ideais, sem quaisquer garantias para a proteção de sua saúde, de seus direitos e de seu sustento.

É um “Estado Pandêmico”

Boaventura de Souza Santos já antecipava o aumento das desigualdades sociais, em “A cruel pedagogia do vírus”, ensaio lançado no início de nossas preocupações com a pandemia (5). Passado um ano, não vemos o prometido desabrochar da solidariedade, ou  o despertar de uma consciência de si mais profunda, graças ao isolamento social. Essas ilusões talvez tenham sua utilidade para dar algum alento momentâneo, mas ocultaram a intragável realidade: a pandemia é lucrativa e atende aos históricos interesses de manutenção de poder e exploração econômica.

O que estamos vendo é a construção do que podemos chamar de um Estado Pandêmico. Trata-se da suspensão do funcionamento costumeiro do Estado, com a abertura para medidas excepcionais, incluindo medidas de Exceção, articuladas a ostensivas ações que incentivam e sustentam a situação de morte pelo coronavírus. É preciso observar que temos ações de combate à pandemia ocorrendo simultaneamente a ações caracterizadas pela mais completa negação de sua seriedade. O que ocorre é que a situação de pandemia está sendo utilizada para a rápida articulação de ações voltadas aos interesses representados pelos bolsonaros e por outras oligarquias. É um álibi para se atacar políticas sociais e promover o desmonte neoliberal.

A histórica desigualdade, calcada em resquícios de uma organização estamental e de uma lógica ainda escravocrata, faz com que o Estado Pandêmico ampare ativamente uma postura de indiferença com as mortes, acompanhado pelos setores que mais lucram. Tomando como exemplo o funcionamento normal do comércio, não importam os riscos em se abrir normalmente. Quem morre trabalhando é a população negra periférica; quem compra no comércio, também. Estudo da PUC-Rio, ainda da metade de 2020, mostra que 55% das pessoas negras infectadas morrem, enquanto esse número entre pessoas brancas é de 38% (6).

Não se trata de afirmar que o vírus “escolha pela cor”, ou pelo nível de renda, como comentaristas de Internet rasamente argumentam. O que se aprofunda é o abismo social que expõe pessoas pobres e negras a mais circunstâncias de risco e a menos cuidados com a saúde. Políticas que poderiam dirimir esses riscos não são colocadas em prática, ou são adotadas parcamente, com a evidente má-vontade do governo Bolsonaro, como no caso do auxílio emergencial, mesmo que este tenha lhe trazido algum capital político.

Prolongar a pandemia dá fôlego à postura conspiracionista de Bolsonaro: tudo que afirme a seriedade e necessidade de cuidados frente à situação vem de supostas forças que querem derrubar o Presidente “escolhido por Deus”. A população mais atingida é aquela já tornada invisível pelas desigualdades sociais e pela lógica de nossas relações que ainda tem resquícios estamentais.

Tudo isso nos coloca em uma posição aberrante frente ao mundo, lideados por uma “anomalia civilizacional”, como Diogo Almeida afirma a respeito de Bolsonaro: o mínimo de boa racionalidade herdada da tradição ocidental é atirada ao lixo, para atender interesses de uma elite e de alguns grupos que experimentaram o sabor do poder político e agora querem aí se perpetuar (7).

O governador João Dória também angaria capital político com a manutenção da pandemia. Posando de salvador por dar a largada na correria da vacinação, é preciso lembrar que o Butantã, agora exaltado por ele, vem sofrendo desmonte sistemático pelos governos de seu partido, o PSDB. Além disso, a insistência em manter escolas funcionando com aulas presenciais, mesmo em um momento crítico como agora, leva-nos a questionar se o interesse está mesmo em salvar a população. A realidade das escolas estaduais não é a mesma das particulares: qualquer pessoa pode verificar isso. Atividades presenciais vão entregar crianças e adolescentes pobres ao contágio, bem como professores e funcionários.

Eleitoreira também foi a atitude de incluir serviços religiosos entre os essenciais. Disputando o eleitorado que tomou  Bolsonaro como seu “bezerro de ouro”, nas palavras de Filipe Rosa (8), não vê problema em excluir do isolamento mais estrito as atividades das igrejas. Isso alimenta ainda mais o discurso negacionista que tem forte apelo aí, principalmente entre pentecostais.

Assim, a ideia de um Estado Pandêmico é a tese de que o Estado brasileiro está ativamente se valendo da pandemia para um projeto de poder, que inclui posturas que atingem diretamente a população trabalhadora, posturas essas que vão do desmonte das políticas públicas até um desprezo com a morte que remete diretamente à eugenia. Isso é feito sabendo que quem mais sofre e morre é a população que historicamente já é a que mais sofre e morre.

(1)AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

(2) SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

(3) MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

(4) https://www.geledes.org.br/chaui-classe-media-e-facista-violenta-e-ignorante/

(5) SANTOS, Boaventura de Souza. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.

(6) http://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-que-brancos-segundo-nt11-do-nois/

(7) ALMEIDA, Diogo H. A. Por que Bolsonaro é uma anomalia civilizacional? Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

(8) https://revistaforum.com.br/debates/messias-bolsonaro-um-bezerro-de-ouro-do-neopentecostalismo-por-filipe-rosa/

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