OPPENHEIMER (2023): o filme que você (provavelmente) não viu – Por Bruno Yashinishi
Como esperado, “Oppenheimer”, de Christopher Nolan se tornou um dos maiores lançamentos do cinema em 2023. Até antão, o filme arrecadou cerca de 300 milhões de dólares em bilheteria em um pouco mais de uma semana, sendo que foi lançado no mesmo dia de “Barbie”, de Greta Gerwig (que já faturou mais de 500 milhões). Assim que circularam os primeiros trailers, as expectativas em torno do filme efervesceram, muito por conta da assinatura do diretor, que desde a trilogia “Batman: o cavaleiro das trevas” (2005, 2008 e 2012) conquista uma significativa quantidade de espectadores e atenção da crítica especializada.
De fato, os críticos têm apreciado a desenvoltura inusitada da narrativa de “Oppenheimer”, assim como a utilização dos efeitos práticos. Talvez não seja o melhor filme de Nolan, mas certamente é o mais sensível, apesar da aparente frieza a complexidade da trama na tentativa de elucidar questões específicas da física quântica. Além da proposta biográfica, outro ponto forte no filme é a excelente atuação de Robert Downey Jr no papel de Lewis Strauss, que seria dignamente uma forte indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante.
O filme retrata episódios conturbados da vida do cientista J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), principalmente, seu envolvimento direto com a criação da bomba atômica pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e as perseguições políticas que enfrentou por ser acusado de ligações com o comunismo. Além disso, questões morais, afetivas e de crises de consciência do personagem principal também são bem desenvolvidas ao longo da trama. Esses são alguns elementos dos significados explícitos e referenciais do filme. Porém, como defendem os teóricos David Bordwell e Kristin Thompson, existem outros dois significados em uma obra cinematográfica: o implícito e o sintomático. Nesse texto, vamos discorrer sobre um ponto implícito e um ponto sintomático de “Oppenheimer”, portanto, (provavelmente) de um filme que você não viu (ou, neste caso, verá, se ler esse texto antes de assistir).
O significado implícito é aquele das “entrelinhas” de um filme, que exige intertextualidade, interpretação e doses de subjetividade de análise. Em uma cena específica, Jean Tatlock (Florence Pugh), notória psiquiatra e amante de Oppenheimer, faz com que o cientista leia uma frase em sânscrito enquanto estão tendo uma relação sexual: “Eu me tornei a morte, a destruidora de mundos”. O trecho lido e citado por Oppenheimer é parte do mais extenso poema épico do hinduísmo e da literatura universal, “O Mahabharata”, escrito há mais de 5 mil anos. A frase foi retirada do “Bhagavad Gita” e proferida pelo deus Vishnu encarnado como Krishna.
Na vida real, Robert Oppenheimer tornou célebre essa citação em uma declaração a TV NBC no ano de 1965 ao descrever sua sensação de acompanhar o primeiro teste da bomba atômica, em 16 de julho de 1945, no estado estadunidense do Novo México. Algumas semanas depois, as cidades japonesas Hiroshima e Nagasaki seriam devastadas pelo ataque nuclear, levando a centenas de milhares de mortes.
O ponto implícito aqui é o fato de Oppenheimer ter lido o trecho de “Bhagavad Gita” durante o ato sexual com Jean Tatlock. Tal como Vishnu, que se apresenta ao príncipe Arjuna em uma forma com múltiplos braços, o casal atinge o ápice da excitação e o orgasmo quando a frase é pronunciada. A alusão ao poema sagrado tem incomodado parte da comunidade hindu, que inclusive encaminhou uma carta de protesto ao diretor Christopher Nolan alegando de que não é esse o sentido do texto, não é uma apologia à destruição e a morte. Uma hermenêutica um tanto perversa ao associar prazer sexual, revelação espiritual e fetiche pela morte, sendo que, tanto Jean quanto Oppenheimer, já sabia o potencial destrutivo da energia nuclear como instrumento bélico.
O significado sintomático diz respeito à ideologia por trás da obra cinematográfica, nem tão fácil de ser compreendido, mas extremamente importante para a significação de um filme. No caso do filme de Nolan, ou em qualquer outra superprodução estadunidense, não mais se discute se a obra é enviesada para propagar ideais de direita ou de esquerda, já que há anos essa “Guerra Fria” não existe mais em Hollywood, pois mesmo que seja munido de críticas, o filme é uma mercadoria e favorece setores industriais e ao mercado. Mesmo assim, uma cena muito importante joga luz à perspectiva ideológica enclausurada nos vaivéns da narrativa de “Oppenheimer”.
Quando o cientista é chamado à Casa Branca e se encontra com o presidente Harry Truman (Gary Oldman, em mais uma brilhante atuação) ocorre um diálogo essencialmente político. Oppenheimer se apresenta como melancólico, agoniado, com certo peso na consciência pelas vidas ceifadas no Japão por meio do projeto liderado por ele. Truman, no entanto, mostra-se satisfeito com o desfecho e os resultados favoráveis da guerra, negligenciando as vítimas inocentes das bombas atômicas. Quando Oppenheimer desabafa que sente suas mãos sujas de sangue, Truman oferece seu lenço. O peso sintomático dessa cena tende a contrapor qualquer objeção ao prisma ideológico e político do filme.
O filme mostra que governo dos EUA usou, se beneficiou, descartou e perseguiu o “pai da bomba atômica”. Não só isso, como também o pânico moral em torno do delírio anticomunista foi (e ainda é) muito mais relevante do que o terrorismo norte-americano. Terror bélico e, principalmente, discursivo e ideológico. O pecado de Prometeu, de Ésquilo, também é um pecado original. Oppenheimer, os Estados Unidos e todos os que tornaram a ciência uma produtora de armas estão longe da absolvição.