Professor da UFSC, Amurabi Pereira de Oliveira fala sobre esoterismo e novas religiões
Leia abaixo a entrevista completa:
1 – Fale-nos um pouco da sua trajetória acadêmica.
Sou licenciado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Porém, antes de entrar na universidade eu já tinha um interesse particular por temas relacionados aos estudos de Religião, sempre que pegava um livro novo de história a primeira coisa que procurava era a parte relacionada à mitologia e religiões, sempre me fascinou.
Como sou de Campina Grande – PB, tive a oportunidade de ainda muito cedo frequentar o espaço do “Encontro para a Nova Consciência”, cujas atividades ocorrem durante o carnaval, e fora analisado por Leila Amaral em “O Carnaval da Alma”.
Ironicamente na graduação nunca pude cursar uma disciplina ligada à religião, no período em que estava fazendo meu curso não houve a oferta de nada vinculado à Sociologia ou Antropologia da Religião, meus estudos mais sistemáticos apenas ocorreram já no mestrado. Em verdade, quando na época da seleção de mestrado pensei em pesquisar Wicca, a construção de seus rituais, seu sincretismo… Porém, quando um amigo me descreveu sua experiência no Vale do Amanhecer, eu achei fantástico, e decidi que queria estudar aquilo. Fui orientado pela professora Magnólia Gibson, que havia pesquisado Esoterismo no Brasil nos anos 90, o que foi muito frutífero, pois ela trazia uma leitura um tanto heterodoxa do movimento New Age, ao destacar não apenas a dimensão mais fluída de circulação dos sujeitos pelas diversas experiências possibilitadas, como também as permanências, o que refletia de forma mais precisa o que eu observava naquela realidade.
Já no doutorado continuei pesquisando o Vale do Amanhecer, agora fazendo campo em Pernambuco, que foi um dos primeiros Estados com templos fora de Brasília, dois dos maiores templos do Brasil ficam lá, em Olinda e em São Lourenço da Mata, fiz meu trabalho de campo neste último e no templo de “Dois Irmãos”, em Recife. Fui orientado pelo professor Roberto Motta, que não pesquisava Nova Era, como a professora Magnólia, mas sim religiões afro, o que me possibilitou outra aproximação com o objeto, vendo de forma mais clara a influência dessas religiões na Nova Era.
Apesar de hoje pesquisar temas mais relacionados à Educação, especialmente o Ensino de Ciências Sociais, continuo tendo a questão da religião como um tema que me instiga, e com o qual dialogo, seja através de orientações, ou da participação em eventos como as Jornadas de Alternativas Religiosas para a América Latina.
2 – O que é o movimento Nova Era? Quais são os seus pressupostos? Existe um perfil/histórico comum aos seus “seguidores/praticantes”?
Nova Era costumo sintetizar como um movimento de sensibilização espiritual que ganha força e visibilidade na segunda metade do século XX, marcado pela articulação de elementos historicamente percebidos como opostos, como oriente e ocidente, corpo e mente etc., incorporando ao mesmo tempo elementos religiosos e não religiosos. Suas raízes históricas, no entanto, remente ao século XX e ao começo do século XIX, às releituras do ocultismo antigo, às práticas esotéricas e ao transcendentalismo.
É difícil encontrar uma definição estrita de Nova Era, justamente pela heterogeneidade que há por debaixo desse tempo, pela pluralidade de perspectivas e pela inexistência de um “movimento” no sentido tradicional que conhecemos. Claro que há alguns pressupostos que parecem percorrer as diversas práticas da Nova Era como um todo, como a ideia de energia, e a concepção mais geral de que a humanidade está passando por inúmeras transformações no nível cultural, tecnológico e espiritual.
Sobre o perfil também é difícil definir, ainda que possamos indicar que há algumas características que diferenciam do perfil de praticantes de outras vivências religiosas. Há uma dimensão mais individualizante e autônoma, o que só é possível neste cenário de modernidade religiosa. Abrem-se possibilidades de composição de crenças que não havia antes, de modo que a experiência vivenciada pode combinar meditação com cristais, anjos, florais, acupuntura, cabala, tarô, búzios etc, sem necessariamente se amarrar a nenhuma matriz de pensamento da qual partem esses elementos.
3 – O que é Aagartha? Existe pesquisadores que acreditam que há vidas no núcleo da terra. Como você analisa este tema?
Seria a crença de que haveria no centro da Terra toda uma civilização, tendo centralidade também a idade da cidade sagrada de Sambhala. Essa ideia surge originalmente no imaginário do hinduísmo e do budismo, tendo sido amplamente divulgado no ocidente através da Madame Blavatsky.
Bem, minha perspectiva para pensar essa questão é das Ciências Sociais, logo, não se trata de pensar em termos binários indicando se a crença está “equivocada” ou não, mas sim de pensar quais as implicações desse fenômeno e como ele se faz possível.
Volto novamente a destacar essa característica especial da Nova Era, que possibilita que se acredite em algo sem compartilhar do sistema de valores no qual tais crenças estão inseridas. Há ainda outra característica interessante desse fenômeno, por exemplo, você cita a existência de pesquisadores dedicados ao tema, e de fato essa articulação entre discurso científico e discurso religioso ou mítico é bastante presente na Nova Era. Se a crença no sentido tradicional se opunha historicamente à ciência, há um esforço nesse momento que se articulem esse dois discursos, ainda que pesquisadores do campo científico no sentido tradicional tendam a atacar estas pesquisas, referindo-se a elas como pseudociências, mas claro, que a própria ciência se move assim, a partir de disputas.
4 – O que é o Vale do Amanhecer?
Posso definir o Vale do Amanhecer como uma religião brasileira, profundamente sincrética, que agrega elementos do kardecismo, do catolicismo popular, da umbanda e da Nova Era formando um complexo místico religioso, tendo surgido em Brasília na segunda metade do século XX, fundado por Tia Neiva.
Claro que esta é uma definição bastante “técnica”, por assim dizer, e sintética, mas que não consegue refletir suficientemente a magnitude dessa religião, termo, aliás, bastante polêmico de se usar aqui, já que recorrentemente os adeptos recusam esse rótulo de religião para defini-lo.
O que é mais interessante nele é como que são articulados distintos discursos, elementos estéticos, filosóficos e religiosos de diversas matrizes culturais que ao fim formam uma totalidade que faz sentido para as pessoas. Quem chega pela primeira vez a um templo do Vale, que pode ter diversos tamanhos a depender do grau de maturação do núcleo, tem uma experiência caleidoscópica, pois tudo parece uma grande bricolage, o colorido das mulheres, chamadas de ninfas, chama a atenção de quem vê, a multiplicidade de referências religiosas, Dr. Fritz, princesas encantadas, pretos velhos, ciganas, Jesus Cristo, tudo isso dentro do mesmo planto cosmológico.
Porém, creio que o mais importante de tudo isso é que o Vale do Amanhecer é uma síntese religiosa do Brasil, refletindo inclusive as próprias hierarquizações internas, e as releituras que são realizadas das entidades oriundas da Umbanda, percebidas como “algo diferente” do que há nas religiões afro-brasileiras, especialmente por não intervirem no livre-arbítrio das pessoas, valor bastante relevante para o kardecismo, que dá boa parte da base doutrinária do Vale.
5 – Em última entrevista ao Contratempo, o Dr. Maurício de Aquino citou o polonês Bauman, dizendo que esses novos movimentos religiosos são sintomas de uma “modernidade líquida”, sendo assim, “religiões líquidas”. Como analisa esta afirmação?
Bem, certamente isso reflete parte do fenômeno religioso na modernidade, o que não se circunscreve apenas ao movimento Nova Era, há muita pluralidade nas religiões afro-brasileiras, no neopentecostalismo e mesmo no catolicismo que reflete um pouco isso. Claro que em alguns casos isso reflete até a dinâmica do que alguns chamam de “mercado religioso”, ou seja, há uma maior flexibilização de doutrinas e valores morais que visa angariar um maior contingente de fiéis, mas não podemos reduzir esse fenômeno a isso.
É importante lembrar que as religiões, de um modo geral, sempre foram dinâmicas e sincréticas. Talvez porque as religiões hegemônicas se apresentem como portadoras de verdades atemporais que tenhamos a impressão de ser uma exceção a flexibilização de doutrinas e valores religiosos, mas isso constitui mais a regra que a exceção, mas obviamente potencializado pela modernidade. A socióloga francesa Daniele Herviu-Léger traz algo interessante, ao indicar que na modernidade temos o fim das religiões herdadas, e que é possível neste cenário acreditar sem pertencer, ou pertencer sem acreditar. Isso significa, que posso consultar as runas ou os búzios sem acreditar em mitologia nórdica, ou no candomblé, do mesmo modo, posso tomar ayahuasca sem precisar me converter ao Daime, ou mesmo acreditar em karma, reencarnação etc., sem precisar pertencer a uma religião que partilhe desses valores.
Talvez se queiramos utilizar a terminologia do Bauman a questão é que haveria uma tendência mais geral para que as religiões se tornem cada vez mais liquidas, ainda que estas possam ser atingidas de formas distintas por esta tendência. E essa própria liquidez insere-se na própria compreensão do que é uma prática religiosa, o que acaba se dissolvendo através de livros de autoajuda, workshops, shows de música, sites especializados etc.
6 – Plêiades e pleadianos, vida no núcleo da terra, essência divina/cristalina, anjos que guiam e ensinam e seres de luz, fazem parte do vocabulário dessas “novas religiões”, embora seus “seguidores” não vejam isso como religião. Existe alguma religiosidade nessas crenças? Se a resposta for positiva, explique-nos quais são esses elementos que configuram o “sagrado”, e como podemos notá-los.
Inicialmente acredito que caberia um esclarecimento que diz respeito à própria pergunta. Ora, recorrentemente falamos de crenças, de sagrado e de religião quase como sinônimos, mas pensemos que não é bem assim, a dimensão do sagrado pode não se vincular a nenhuma crença ou nenhuma religião, e do mesmo modo, uma religião pode possuir uma pluralidade de crenças, por vezes até mesmo conflitantes. Isso é um a priori relevante aqui.
Retomando um argumento que já lancei, há um movimento de sensibilização espiritual que abarca não apenas práticas religiosas, como também não religiosas e mais que isso, muito do que estamos acostumados a perceber como religião não parece se enquadrar exatamente nesses termos na visam nos praticantes. Em minha pesquisa com o Vale do Amanhecer, por exemplo, o mais recorrente é que os adeptos afirmassem correntemente de que não se tratava de uma religião, mas sim de uma doutrina.
Certamente há algo de sagrado em tudo isso que você fez referência, e talvez possamos resumir o sagrado nessa relação do ser humano com um plano não imediato que ele percebe que é regido por outras lógicas, que não a lógica cotidiana da relação entre as pessoas, normalmente situada em outro plano, e por vezes compreendida como articuladas por seres com naturezas sensivelmente distintas das nossas, sejam anjos, duendes, orixás, santos, deuses etc.
Outra questão que entra nesse processo diz respeito ao fato de que uma das marcas da Nova Era é justamente o deslocamento de elementos de um determinado contexto para outro, sendo estes recontextualizados e ressignificados a luz de outros elementos, o que inclui as experiências anteriormente vivenciadas pelos adeptos. Pensemos na astrologia, no yoga, na quiromancia, por exemplo, não necessariamente aqueles que se envolvem com tais práticas o fazem nos termos postos pelo contexto original no qual foram desenvolvidas, entretanto, isso não implica numa dissipação total de seus elementos religiosos e místicos.
* Amurabi Pereira de Oliveira possui Licenciatura Plena (2007) e Mestrado (2008) em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande e Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). Atualmente é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Pesquisador do CNPq (bolsista PQ nível 2). Pesquisador do NEJUC (Núcleo de Estudos em Educação e Juventudes Contemporâneas) e do METROPOLIS – Laboratório de Pesquisa Social. Associado Efetivo da ABA e da SBS, Atua principalmente nos seguintes temas: Sociologia e Antropologia da Educação, Ensino de Ciências Sociais (Sociologia e Antropologia), Formação de Professores de Ciências Sociais, Religiosidades, Nova Era, Estudos Pós-Coloniais, Antropologia e Sociologia do Corpo e Gilberto Freyre.