Thiago de Mello, a utopia militante em nome do coletivo
João Teixeira
Thiago de Mello juntou -se á constelação de estrelas da literatura latinoamericana do século XX.
Nascido em 31 de março de 1926, nos cafundós de Porantim do Bom Socorro, município de Barreirinha, no Amazonas, o poeta, tradutor, escritor, jornalista, artista gráfico e roteirista Amadeu Thiago de Mello está no Olimpo da resistência democrática á ditadura civil-militar no Brasil (1964/85).
Na mesma linhagem de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar e Antônio Callado, entre outros; dos argentinos Júlio Cortázar e Ernesto Sábato; do uruguaio Mário Benedetti; do chileno Pablo Neruda; do peruano Manoel Scorza; e do cubano Nicolás Guillen, o amazonense Thiago de Mello – um dos poetas mais influentes e respeitados do mundo, cujas obras foram traduzidas para mais de 30 idiomas – foi dirigente comunista armado perseguido e exilado, defensor da ecologia e do meio ambiente.
Mello pertenceu á geração de artistas engajados que anulou o “eu” e exaltou o “nós”. A vida o inspirava.
“Nasci com o ritmo dentro de mim e é da própria vida que nascem os meus poemas. A inspiração vem da vida do homem neste lugar chamado Terra. O que me incomoda ou me espanta, me dá esperança ou indignação”.
Como Unamuno (“se hace camino al caminar…”), Thiago de Mello propunha novas formas de caminhada.
“Não, não tenho caminho novo/o que tenho de novo/é o jeito de caminhar” (“A vida verdadeira”).
Criança, Mello mudou para Manaus, estudou no Grupo Escolar Barão de Rio Branco e no Ginásio Pedro II.
No Rio de Janeiro, dez anos mais tarde, ingressou na Faculdade Nacional de Medicina, que não chegou a concluir em favor da literatura e da militância política.
Nos anos 50 do século XX, no auge da atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na vanguarda das lutas da classe trabalhadora, quando os comunistas criaram uma ampla rede de comunicação, jornais, revistas e uma agência noticiosa no País, Mello tornou-se colaborador dos jornais “Comicio” e “A Tribuna Popular”, em oposição a Getúlio Vargas.
Associado a Geir Campos, outro grande poeta, fundou a Editora Hipocampo, lançando “Silêncio e palavra”.
Nesta época, Thiago de Mello dirigiu o Departamento Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Depois, foi agente diplomático do Itamaraty, na Bolívia.
Estávamos nos tempos efervescentes de transformação política e social, raiz da criação artística e cultural brasileira, que iria desembocar no projeto nacional-reformista do presidente João (Jango) Goulart, abortado pelo golpe civil-militar de 1964.
Todas as formas de expressão artística, canto, poesia, cinema, teatro, comunicação, jornalismo e literatura, pautavam as aspirações populares.
O poeta Thiago de Mello personificou como poucos esta etapa gloriosa do povo brasileiro.
O amazonense esteve no front da intelectualidade cabocla desde os primeiros momentos da noite escura, a começar pelo original episódio dos “Oito da Glória”, ocorrido no dia 11 de novembro de 1964, diante do Hotel Glória, na Praia do Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro.
Naquele dia, o marechal-presidente Humberto de Alencar Castelo Branco presidiu uma reunião extraordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA) ante um protesto inusitado.
“Abaixo a ditadura”.
“Viva a liberdade”.
Faixas e lemas com estes dizeres originais, que ecoariam fortemente pelas ruas nos anos seguintes, foram erguidos pelos jornalistas Paulo Francis, Antônio Callado e Carlos Heitor Cony; os cineastas Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Mário Carneiro; o dramaturgo Flávio Rangel; o político Márcio Moreira Alves; e, por fim, o poeta Thiago de Mello, aliás o único que, ágil, pressentiu a chegada da polícia e escapou da prisão.
Os outros ilustres manifestantes passaram 11 dias presos no quartel da Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita.
Ninguém foi maltratado, mas valeu o susto.
A má repercussão do episódio no exterior mostrou aos militares que sufocar a classe artística não seria tarefa fácil.
“Os estatutos do homem” (Ato institucional permanente”), o poema mais conhecido de Thiago de Mello, foi a resposta singela e poderosa ao Ato Institucional (AI) número 1 dos militares que passava mandatos legislativos, suspendia direitos políticos e punia servidores públicos.
Artigo I
Fica decretado que agora
Vale a verdade
Que agora Vale a vida,
E que de mais dadas,
Trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Traduzido por Pablo Neruda, um de seus grandes amigos, de quem traduziu “A terra devastada e os homens ocos”, de T.S.Eliot, os “Estatutos” tornaram-se mundialmente conhecidos como arma antiditatorial.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
Inclusive as tercas-feiras mais cinzentas,
Tem direito em converter -se em manhãs de domingo…
Em 1966, “Faz escuro, mas eu canto” deu sequência à sua magnífica obra poética, transformada sob este título em peça teatral e sinfonia musical.
Artigo III
Fica decretado que,
A partir deste instante,
Haverá girassóis em todas as janelas,
Que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra,
E que as janelas devem permanecer,
O dia inteiro,
Abertas para o verde onde cresce a esperança…
A poesia de Thiago de Mello deu lugar ás armas na resistência armada ao regime militar.
Como membro da Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Mello passou a ter seus passos vigiados não mais pela censura, que cortava seus versos, e sim pelo temido delegado Sérgio Paranhos Fleury, o algoz da esquerda armada, como prova o documento exclusivo que ilustra esse texto.
Os órgãos de segurança, em 1969, fechavam o cerco contra as organizações clandestinas, os impacientes “novos comunistas” envolvidos na guerra revolucionária.
E, surpresas, as autoridades civis e militares descobriam a teia subterrânea que acobertava o engajamento de poetas, compositores da música popular e publicitários na guerra clandestina.
O poeta amazonense Thiago de Mello vinha articulando em São Paulo a vinda de um respeitável dirigente do Partido Comunista Revolucionário (PCR), o alagoano Manoel Lisboa de Moura (“Galego”), para a Ala comandada por Diniz Cabral Filho.
Eis que, neste intercurso, dá-se a prisão do engenheiro Ricardo Zarattini, no dia 29 de julho de 1969, que havia fugido de um quartel militar em Recife.
Além de Zarattini, do PCR, outro peixe graúdo, este das Ligas Camponesas, Amaro Luís de Carvalho (“Capivara”), foi preso em seguida.
Zarattini (ex-deputado do PT) morava na Ria Avanhandava, no centro paulistano, vizinho de uma dupla famosa de compositores e publicitários, Walter Santos e Teresa Souza, ambos militantes políticos de esquerda.
(A título de curiosidade: nesta época, um importante político do Brasil neoliberal era um simples vendedor ambulante de chinelos em Maceió – Renan Calheiros, ex-líder estudantil, era maoísta antes de ser senador da Republica).
Artigo IV
Fica decretado que o homem
Não precisará mais duvidar do homem,
Que o homem confiará no homem,
Assim como uma palmeira confia no vento,
Como o vento confia no ar,
Como o ar confia no campo azul do céu…
As prisões em 1969 jogaram por terra todas articulações clandestinas. Manoel Lisboa, juntamente com Emanuel Bezerra, outro ativista perseguido, foram fuzilados pelos homens do delegado Fleury em São José dos Campos.
Capivara foi envenenado numa prisão do Recife.
Novamente, o poeta Thiago de Mello conseguiu escapar, exilando-se no Chile, Argentina, Portugal, França e Alemanha.
Em 1975, publicou “Poesia comprometida com a minha e a tua vida”, premiada pela Associação Paulista dos Críticos de Arte.
Parágrafo unico:
O homem confiará no homem
Como um menino confia em outro menino.
Em 70 anos de produção literária, Mello exaltou valores simples da alma humana. Que o resgate de sua obra imortal, nesta etapa de reconstrução da vida brasileira, sirva como demonstração de fé e esperança em nosso futuro como nação.