REPOST: É preciso cantar
Por FERNANDO LICHTI BARROS
Não se preocupe: a voz que você ouve enquanto abre o crediário não é a da sua consciência alertando para os riscos do endividamento. É, sim, o canto de Wilson Simonal, Altemar Dutra, Chico Buarque, Nara Leão, Martinha ou Erasmo Carlos. Agora mais relaxado, feliz com a camisola sanfonada ou o terno de tropical que comprou em prestações, você pode assistir ao show ali mesmo, na Clipper, a loja de departamentos do Largo de Santa Cecília.
Não se assuste: o que você vê no Ela, Cravo e Canela enquanto bebe um gim-tônica não são imagens delirantes do seu inconsciente, embaralhando liberação de costumes com refinada crítica ao autoritarismo. É, sim, um desfile de mulheres de topless ou a ante-estreia de Liberdade, Liberdade, a peça teatral de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em que Paulo Autran apresenta uma colagem de pensamentos de Garcia Lorca, Aristóteles, Tiradentes, Stanislaw Ponte Preta e Carlos Drummond de Andrade.
Assim como na Clipper, atividades diversas cabem no Ela, Cravo e Canela. O forte do bar da Rua Major Sertório, porém, é a música. Isso ficou chancelado já na noite de inauguração, em 21 de abril de 1964. Sabe quem estava lá? Papudinho, Azeitona, Zinho e Cido Bianchi, trompete, baixo, bateria e piano em mãos insuspeitas. Não tivessem sido contratados para o evento, eles seguramente iriam tocar em outra freguesia. Ainda é grande a oferta de trabalho, apesar das piscadelas de sinal amarelo emitidas pela incipiente concorrência do som eletrônico que o Djalma’s, por exemplo, vai adotar. Ainda há, para completar, uma ala dos notívagos deixando-se cooptar pelo pijama de listras e as imagens em preto e branco da televisão.
Arrependam-se, traidores da causa. Saibam que a sua tibieza não impede a multiplicação das boates, nem o cortejo feito aos heróis da resistência com atrações musicais para todos os gostos. É só escolher o que vem por aí: Inezita Barroso e o Brasil rural no Jardim de Inverno Fasano, Bienvenido Granda e a dramaticidade latino-americana no Clube de Paris, Leny Eversong e a influência do jazz no Ela, Cravo e Canela, e na Oásis a previsão de público em delírio com Babalu na interpretação de Angela Maria. No Saloon, The Jet Blacks defendem as cores do iê-iê-iê, enquanto a bossa nova instrumental faz residência com o Esquema-3, de Claudio Slon, no Captain’s Bar; no Juão Sebastião Bar, com o quarteto de Ely Arcoverde, e na Baiuca com o Sansa Trio, de José Briamonte.
Pianista e arranjador, Briamonte é admirado por Johnny Alf. Não é pouca coisa. Johnny, a bossa em pessoa, semeia o gênero nas madrugadas da Pauliceia. Hoje ele está no Le Club, no Centro Metropolitano de Compras, o nome oficial da Galeria Metrópole. Para sucedê-lo, sempre haverá um nome expressivo, uma artista com os atributos de Sylvinha Telles. Musicalidade, afinação, pronúncia, às vezes um leve e sensual arranhado na voz, o charme evidente no LP gravado nos Estados Unidos com o guitarrista Barney Kessel, tudo isso sobressai no show de Sylvinha, no Le Club.
Pode ser que a casa esteja lotada, mas nunca fica ao desamparo quem anda sob os plátanos da Avenida São Luiz em direção à Galeria Metrópole. São 32 as casas noturnas, de tórridos inferninhos a ambientes que, para sugerir luxuosidade, tanto recorrem à luz indireta de abajures e ao conforto dos estofados como aos tristes pingos de um chafariz.
The Open Door, Aquela Rosa Amarela, Bar Bossinha, Eve, Canto Terzo, O Barquinho, e assim vão as boates em serpenteio pelos pavimentos da galeria. No ar, um pot-pourri de estilos e gerações que junta Jorge Costa, Gilberto Gil, Claudia Barroso, Silvia Goes, José Roberto Beltrami, Modern Tropical Quintet e outros intérpretes.
Aos menos abastados, uma dica: quando o estômago roncar, deem uma chegada ao Sandchurra, no subsolo. Preços módicos e porções generosas. Com jeitinho, pendura-se a conta. Melhor ainda, fica perto do Jogral, para onde se encaminha um senhor que usa bigode e passa o dia mergulhado em estudos herpetológicos.
O Jogral é o bar do compositor Luiz Carlos Paraná, que toma leite enquanto os amigos emborcam biritas aos hectolitros. E o senhor de bigode, quem é? Alojado no bar de que é um dos mais assíduos frequentadores, ele deixa de ser o professor doutor que veste jaleco no Museu de Zoologia da USP e se transforma num PhD das artes boêmias. Paulo Vanzolini aprecia a cachaça com gelo servida pelo garçom Antoninho, tamborila na caixa de fósforos e, com olhos de cronista, utiliza em Ronda e Praça Clóvis cenários de uma cidade onde, aliás, as transformações são constantes. Uma delas desagrada ao público do Jogral: a galeria, em 67, parece outra, mais agitada, mais ruidosa.
A partir do ano seguinte, ao passar pelo nº 16 da Rua Avanhandava, não se espante: as vozes que lhe soam familiares podem ser, sim, de Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Luiz Gonzaga ou Lupicínio Rodrigues. No novo Jogral, em todo lugar, mais que nunca é preciso cantar.
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Da série Música no Ar: Um passeio pelo Centro na década de 1960, de Fernando Lichti Barros, publicada pelo Sesc 24 de Maio.
Leia no site: http://aoredordosom.blogspot.com/2022/09/e-preciso-cantar.html?m=1