Por que o movimento pelo impeachment de Dilma micou
por Marcelo Rubens Paiva
Ações de março vieram com o selo “movimento espontâneo”, apesar da eficiência política e da mistureba ideológica questionáveis. Levaram crise e indagações ao Poder. Repensou-se o País e a inoperante democracia representativa sob regras de um sistema partidário falido, que não é teimosamente reformado.
Nas varandas, a bateção de lata em cada aparição ou menção da cúpula petista, a indignação pela monstruosidade da corrupção e fraudes contábeis, provava que, coxinha ou empada, bairro nobre ou plebeu, havia (há) insatisfação de um grupo social significativo com voz. A lista de paternidade se acotovelou na vitrine do berçário.
“Fora Dilma!” levou um milhão à Paulista (segundo contagem discutível da PM, “a polícia do Alckmin”) ou 210 mil (segundo o Datafolha). Cobriu a avenida de verde e amarelo e obrigou analistas a voltarem aos manuais de ciência política, para confirmar a maturação de uma nova direita.
Grupelhos e siglas até então desconhecidas, mais o desagrado generalizado com a crise econômica que saía do coma forçado, depois da retirada do soro de uma política populista de subsídio a eletrodomésticos, carros, luz e combustível, levaram microfones, celebridades e carros de som ao maior ato político desde as Diretas-Já.
Prometeram uma megamanifestação todos os meses. A de 12 de abril foi menor. A PM, depois de criticada por superestimar a anterior, calculou em 275 mil participantes. O Datafolha continuou apostando nos mesmos 210 mil. A de 17 de maio, micou. O cantor Lobão discursou no vão-livre do Masp para apenas 40 pessoas (segundo a PM), 50 (Datafolha). Dez dias antes, reclamara para Emanuel Bonfim, da Rádio Estadão, que 80% dos seus shows foram cancelados em retaliação à sua nova posição política.
O movimento com intrusos rachou. Corpos estranhos o esvaziaram. Parte do maior beneficiário, o PSDB, retirou o apoio. Seu porta-voz inconteste, o ex-presidente Fernando Henrique, se colocou contrário ao impeachment. Foi chamado de traidor.
As mesmas redes sociais que alavancaram o movimento e serviram de púlpito a um debate burro, polarizado e cheio de ódio, difundiram suas contradições. Um dos líderes do Vem Pra Rua, que defende o fim da corrupção, foi pego num vídeo fraudando o ponto e demitido. Outro manifestante, que foi à avenida em março vestido de amarelo, protestou contra a corrupção e postou “a sociedade não aguenta mais tanta mentira, corrupção, sacanagem, falta de respeito ao povo”, pediu ajuda a amigos 50 dias depois, para retirar da sua carteira infrações de trânsito (oito pontos por desobedecer ao rodízio, dez por estacionar em local proibido e sete por desrespeitar limites de velocidade). Dizia: “Pago bem. Contatos inbox urgente! Rsrsrs”.
Em abril, descobriu-se que Gravataí Merengue, do site Implicante, que publica e compartilha notícias, artigos e vídeos contra o PT, pseudônimo de um blogueiro ativista antipetista, ganhava R$ 70 mil por mês do governo Alckmin.
O “soldado Carvalhal” espalhou em áudio que uma tal inteligência das Forças Armadas recomendava o estoque de mantimentos para a luta que rolaria entre as forças da direita e esquerda na eminente intervenção militar. O Centro de Comunicação Social do Exército teve que vir a público informar que “os áudios veiculados nas mídias sociais não têm origem no Exército Brasileiro”.
Defensores da volta do regime militar podem ser enquadrados no artigo 23 da Lei de Segurança Nacional, ironicamente o suporte ideológico da ditadura militar, em que a própria Dilma foi enquadrada ao ser presa em São Paulo, em 1970. O artigo prevê pena de um a quatro anos de detenção a quem incitar “subversão da ordem política ou social” ou “animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”.
Um dos líderes dos que pedem intervenção militar, capitão da reserva da Marinha, Sérgio Luiz Zorowich, foi intimado a depor em inquérito da Polícia Federal. Revelou-se que Zorowich, que vinculava a presidente Dilma ao Estado Islâmico e PCC, para quem o impeachment é pouco, era dono de empresas que prestavam serviços à Petrobrás e faliram.
No dia 27 de maio, uns 300 manifestantes concentrados em frente ao Congresso pediam o impeachment. Esperavam 30 mil. Numa faixa se lia “Anistia Nunca Mais!”, “Tortura na Hora Certa”. Recuperou-se um lema da ditadura: “Brasil Ame-o ou Deixe-o!”. Foi o dia em que chegou a Brasília a marcha organizada pelo Movimento Brasil Livre, que caminhou desde São Paulo até a Capital Federal. Tinha mais policiais do que manifestantes.
Seus líderes protocolaram o pedido de impeachment e posaram para uma foto com o presidente do Congresso, Eduardo Cunha, citado na Lava Jato, e Jair Bolsonaro, condenado pela 6.ª Vara Cível do Fórum de Madureira a indenizar em R$ 150 mil por danos morais o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, por causa de declarações contra homossexuais.
Aécio Neves não apareceu para saudar o movimento. Foi chamado de traidor.
Por fim, no dia seguinte, 28 de maio, foi a vez da Aliança Nacional dos Movimentos Democráticos se reunir com políticos da oposição para pedir a rejeição à taxação de grandes fortunas e impostos sobre heranças. A pauta nunca entrou nas reivindicações dos grupos que foram às ruas. Dois outros grupos, Acorda Brasil e Quero Me Defender, não confirmaram o apoio à não-taxação. O principal grupo da Aliança é o Vem Pra Rua, de empresários e executivos do mercado financeiro.
Uma classe social perdeu privilégios. O que se viu foi um desejo de voltar ao passado, com lemas e temores engavetados na Guerra Fria, como o esquecido “Vai pra Cuba!”, e uma política de concentração de rendas. Mas grande parte sabe que a democracia não tem volta.
O movimento micou. Parte da culpa é dos intrusos. Outra parte percebeu que, na verdade, a direita e seus aliados estão espalhados pelo Poder. Nunca saíram dele. Não faria sentido tirar os empregadores dele, impeachar a patroa.
Fonte: Viomundo/Estadão