Carnaval: Catarse ou alienação?

 

“Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros que nós queremos sambar…” (Assis Valente)
O debate sobre a identidade do povo brasileiro é histórico.
A beleza de nossa gente morena, miscigenada – não a negritude forçada que a militância identitária tenta nos impor goela abaixo -, o amálgama tupiniquim, tem desafiado grandes pensadores: Silvio Romero, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Francisco Amaro Gurgel Filho.
O brasileiro tem a brincadeira como política, e faz política como brincadeira?
“…A dor e a delícia de ser o que é…”, como Caetano cantou.
As grandezas e misérias tropicais são cantadas em verso e prosa. A construção do pensamento brasileiro, expressando a vontade coletiva, universal, serve de modelo a outros povos.
O homo sapiens, que fala, canta, samba, sorri, apresenta diferentes fenótipos; os caracteres visíveis das pessoas são determinados pelo fenótipo e as condições ambientais.
No Brasil, do mulato inzoneiro, a terra do “Brasil pandeiro”, as cores convivem – não apenas se toleram, como em outros países -, amam-se, casam-se, reproduzem-se e morrem.
Em meados do século XX, nos anos 70, a juventude rebelde, como um cão de rua, lambida suas feridas, finda a utopia da ditadura do proletariado e da tomada dos meios de produção.
A vitória do MDB, o partido da oposição, nas principais cidades, demonstrava nas urnas a insatisfação popular contra o modelo econômico do Brasil Grande.
A política de frente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) mostrava vigor, e a cúpula do partido – alguns no exílio, e dezenas mortos e “desaparecidos” – passaram a ser caçados pelos generais.
Os comunistas – velhinhos filósofos, desarmados – amarraram perdas na transição democrática.
O inconformismo explodia nos versos das canções.
“Você deve notar que não tem mais tutu, e dizer que não está preocupado, são palavras que ainda te deixam dizer por ser disciplinado…” – Gonzaguinha protestava contra a letargia das massas no Brasil 70.
“Comportamento geral” escapou da Censura sabe-se lá como. Um sonoro tapa na cara das massas alienadas e manipuladas pelo poder que ainda exultavam com a conquista da Copa no México.
“Noventa milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração…” A marchinha de Miguel Gustavo – no pré-64, Gustavo havia composto “É Jango, é Jango, é Jango Goulart” , como recordava José Ramos Tinhorao – embalava as transmissões ufanísticas que o general-presidente Médici capitalizava para o regime.
Presentemente, nestes sombrios tempos bolsonaros, fala -se em “gado” manipulado pelo poder nefasto.
A História se repete como tragédia. Nos anos 60, afora os setores sociais mobilizados pelo projeto nacional-reformista de Jango, PCB/PTB á frente, os sindicalistas, militares nacionalistas e de esquerda, religiosos, estudantes e intelectuais, os trabalhadores grevistas, a sociedade de forma geral mantem-se apática e omissa em relação á luta pelo poder, sob qualquer regime, ditadura ou democracia.
O Brasil deixou a democracia e entrou na ditadura civil-militar (1964/85) da mesma forma que ganhou a Independência (1822), passou da monarquia á República (1889), sob Getúlio Vargas (1937/54) e o regime militar de 21 anos.
Em 1964, as tropas foram aplaudidos nas ruas por uma classe média fanatizada pelo anticonunismo, “os comunistas comedores de criancinhas”, os materialistas ateus inimigos da civilização cristá ocidental.
Os blocos de poder que disputavam o controle do Estado, leia-se o capital multinacional, a burguesia industrial associada aos americanos, monopolista-burocrático, ligados ao IPES/IBAD, de Golbery, administraram bem os “gabinetes de ódio” daquela época.
“É coisa dos homens”. Essa expressao consagrada na música popular, de Aldir Blanc, denota a afasia por organização, partido ou poder.
“…vocé merece, vocé merece, tudo vai bem, tudo legal, e amanhã, seu Zé, se acabarem com teu carnaval”.
Os golpistas manipularam á vontade os dogmas conservadores da Igreja Católica. Como hoje.
As donas-de-casas católicas, principalmente, foram importante esteio no Rio, São Paulo e Minas Gerais.
Brizola foi escorracado como o “Anticristo” por religiosas, de terço na mão, em Belo Horizonte.
Na Copa 70, o maior Carnaval já visto por aqui, de nada adiantou a pregação anti-Brasil nos cárceres da ditadura.
Alguns presos políticos não queriam – em vão- que os generais de plantão retirassem em cima da Jules Rimet.
No País do futebol, cada gol do Brasil foi comemorado por todos, com emoção.
Nas ruas, os presos políticos, expostos á execracao pública pelo aparato militar, eram chamados de “terroristas” e ameaçados de linchamento.
Futebol, religião e Carnaval são de fato o “ópio do povo”? – como os comunistas e tantos intelectuais apregoam?
“…vocé merece, tudo vai bem, tudo legal, e amanhã, seu Zé, se acabarem com teu Carnaval”.
Gonzaguinha, do Movimento Artístico Universitário (MAU), ligado ao PCB, chacoalhava multidões com a mensagem contundente
Telmo Martino, o cáustico colunista do Jornal da Tarde , passou a chamá-lo de “cantor-rancor”.
O Carnaval brasileiro, a maior festa do planeta, é a mais sobeja demonstração da democracia racial, Amaro Gurgel defende.
“Entre nós prevalece a fundição dos seres humanos, um único povo, o povo mais Universal da Terra, o povo novo”.
Criolé do Samba, desde 1998 símbolo e nome de rua da Vai-Vai do Bexiga, com seu sorriso espontâneo e incrível simpatia, é a cara do Brasil no exterior.
A exemplo de Sargentelli, que mantinha o show “com as mulatas que não estão no mapa”, Criolé, acompanhado da banda Canto Pixaim, já chegou a Moscou e Pequim.
Na Rússia, diante do Hotel em que se hospedava, formou uma roda de samba: o passista Criolé tirou o chapéu em saudação ao público, e os russos despejaram nele muitos dólares.
Todos os dias, pela manhã, Criolé repetia o show em diferentes pontos de Moscou.
Também não perdeu o gingado quando recusou -se a tomar sopa de cabeça de cachorro. “O que é mais limpo, cachorro ou porco?” – perguntou -lhe o chinês.
Nem tudo são flores, porém.
Ou, como no caso de Criolé, até relógio Rolex já foi parar dentro de seu chapéu.
Muitos dramas envolvem o mundo do samba.
Pato N’agua, o famoso apito da Vai-Vai, imortalizado por Geraldo Filme no samba “Silêncio no Bexiga”, foi assassinado pelo “Esquadrão da Morte”, do delegado Sérgio Fleury,.
Seu corpo foi achado numa lagoa, perto de Mogi, crivado de balas.
“Silêncio o poeta está dormindo, ele foi mas foi sorrindo, a notícia chegou quando anoiteceu…”.
Pato N’agua era um pequeno traficante de maconha. Andava em companhia do jornaleiro Tião, contra-regra da TV Tupi, um coitado, diz quem o conheceu.
O patrão de Tião e Pato N’agua foi o maior banqueiro do jogo-do-bicho de São Paulo: Ivo Noal.
O escritório de Noal, na Avenida Higienópolis, ficava a cem metros da Secretaria de Segurança Pública.
O filho de Noal herdou o negócio.
“…escolas eu peço o silêncio de um minuto, o Bexiga está de luto, o apito de Pato N’agua emudeceu…”
Aliás, contravenção e drogas movimentam a “indústria do samba”.
O cantor Tobias quase morreu por overdose de cocaína, nos anos 70.
“…partiu não tem placa de bronze, não fica na história, sambista de rua morre sem glória, depois de tanta alegria que ele nos deu, assim, um fato repete de novo, sambista de rua, artista do povo, e é mais um que foi sem dizer adeus”.
Carlos Andreazza escreveu em O Globo: “um complexo de atividades criminosas fez do Rio de Janeiro refém, aliado a governantes que se sucedem, sustentados por essas alianças”.
“…pra tudo se acabar na quarta-feira. Tristeza não tem fim, felicidade sim”.

João Teixeira

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