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Por que perseguem o padre Júlio Lancellotti?: Kafka “explica” – Por Bruno Yashinishi

Por que perseguem o padre Júlio Lancellotti?: Kafka “explica” – Por Bruno Yashinishi

Certa vez, em uma entrevista concedida a Jô Soares no programa “Jô Soares Onze e meia”, ainda no SBT, o escritor português José Saramago disse a seguinte frase: “Não é a pornografia que é obscena. É a fome que é obscena. Enquanto nós não compreendermos isto não há o direito, não há uma única razão para que um único ser humano morra de fome…” Contra a obscenidade da fome, na maior cidade da América Latina, luta Júlio Renato Lancellotti (75), pedagogo e presbítero da Igreja Católica.

Padre Júlio tem sido notícia nos principais jornais do país e tornou-se uma das figuras mais importantes e conhecidas do Brasil na atualidade. No entanto, desde que foi ordenado presbítero, em 1985, o religioso tem sido ativo na sociedade e na igreja paulistana, principalmente em questões relacionadas aos Direitos Humanos e ao cuidado especial com moradores de rua, dependentes químicos e demais populações marginalizadas socialmente.

Ainda nos anos 1980, conheceu e tornou-se íntimo de Dom Luciano Mendes (1930-2006), então bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo e uma das figuras mais proeminentes da Igreja na América Latina, ao lado de outras personalidades importantes, como Dom Helder Câmara (1909-1999), Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), entre tantas outras. Foi com Dom Luciano que padre Júlio estruturou a Pastoral do Menor na Arquidiocese de São Paulo. Pouco tempo depois colaborou diretamente na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na criação da Pastoral da Criança, lutou contra os maus tratos sofridos por menores na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), foi um dos fundadores da Comunidade Povo da Rua São Martinho de Lima e do projeto “Casa Vida” para acolher crianças portadoras do vírus HIV.

Concomitantemente, em 1986, Júlio Lancellotti foi nomeado pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, em são Paulo e, desde então, engaja-se veementemente junto com os membros da Pastoral do Povo de Rua, e diversos voluntários, inclusive de diferentes convicções religiosas ou não, em trabalhos com moradores de rua e menores abandonados.

Ao longo da vida em prol dos menos favorecidos, padre Júlio recebeu vários prêmios, homenagens e reconhecimento de órgãos nacionais e internacionais. Apenas para citar alguns: em 2000 recebeu o Prêmio “Franz de Castro Holzwarth”, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por seu engajamento contra a violação dos direitos das crianças e adolescentes; em 2004 recebeu o “Prêmio Nacional de Direitos Humanos” pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos; em 2020, recebeu o Prêmio “Poc Awards”, na categoria “influencer” do ano, pelo portal de conteúdos LGBTQIA+ “Gay Blog Br”, por conta de seu enfrentamento à homofobia; em 2023 foi condecorado com a “Medalha da Ordem” do Mérito do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, no grau de “Grã-Cruz”.

Além dessas e de várias outras condecorações, padre Júlio é Doutor Honoris Causa pela Universidade São Judas Tadeu, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais e pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sem dúvida, um grande ativista contra a pobreza, as desigualdades sociais, as formas de segregação socioespaciais e, sobretudo, contra a fome.

No entanto, há vários anos, padre Júlio tem sido alvo de perseguições sórdidas, violentas e extremamente odientas, oriundas principalmente de grupos de extrema direita e daqueles que engolem e se estufam de sua dominação ideológica. Em 2007 sofreu ameaças de morte e extorsões de um casal que falsamente o acusou de pedofilia (em 2011, a Justiça condenou o casal a mais de sete anos de prisão); durante o governo Bolsonaro (2019-2022) foi alvo de críticas sensacionalistas e piadas homofóbicas de figuras “ilustres” como um apresentador de talk show da TV e de um ex-integrante do MBL, por exemplo; em 2023, recebeu um bilhete de um idoso de 72 anos também com ameaças de morte e perseguição política.

Mais recentemente, esteve envolvido em uma patética tentativa de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o trabalho de ONGs na região da Cracolândia, capitaneada pelo vereador Rubinho Nunes (União) e também tem sido alvo de acusações nas redes sociais de que teria realizado uma videochamada com um menor de idade.

Mas por que tanto ódio contra esse homem? Por que inclusive religiosos conservadores o amaldiçoam costumeiramente? Por que perseguem o padre Júlio Lancellotti? Talvez, uma explicação (não resposta) surja da Literatura.

O escritor Franz Kafka (1883-1924), conhecido principalmente por obras como “A metamorfose” (1912-1915) e “O processo” (1914-1925), publicou pela primeira vez em 1922, em alemão, um conto intitulado “Um artista da fome”. Nessa estória, o protagonista é um artista da fome, nome dado à pessoa que se exibia nas ruas para um público pagante fazendo jejum total por um período de quarenta dias ininterruptos. Esse “espetáculo” bizarro era comum em regiões da Europa e nos Estados Unidos durante os séculos XVII e XIX.

No conto de Kafka, o artista da fome é apresentado em praça pública trancafeado em uma jaula, deitado em palhas e tendo seu jejum tornado um divertimento para os transeuntes. O homem, que já estava em condições de fraqueza e desnutrição, vangloriava-se por jejuar de forma natural e sentia-se incompreendido pelos seus observadores que achavam que aquilo era um sacrifício pra ele. O artista da fome era na verdade um insatisfeito por nunca ter encontrado um alimento que o agradasse. O jejuador achava que sua fome era uma arte, um dom, um ofício que deveria ser apreciado e admirado por todos.

A sua jaula era sempre vigiada por homens que se revezavam em plantões para garantir que o artista não iria romper seu jejum, mas isto era apenas uma formalidade, pois o jejuador não comeria coisa alguma pela honra de sua “arte”.

O empresário do artista da fome, aquele que o exibia em público e lucrava com sua abstinência alimentar, estabeleceu um prazo de quarenta dias para que a atração acabasse e o infeliz jejuador finalmente se alimentasse. Entretanto, após a quaresma, quando finalmente a jaula foi aberta e bonitas jovens ofereceram um banquete ao artista, este recusou a comida, pois, para ele, acabar com sua fome era um desrespeito. Porém, sua “arte”, antes motivo de curiosidade e admiração, agora se torna algo repulsivo. As pessoas não querem mais assistir a um homem se definhando pela fome. O artista inconformado demite seu empresário e vai trabalhar em um circo como cuidador de animais.

Mesmo no novo ofício, o artista ainda continuava a jejuar, mas as pessoas queriam ver os animais e não sua abstinência. Após algum tempo, o inspetor do circo dá pela ausência do tratador dos animais. Ao saírem a sua procura o descobriram definhando dentro da jaula, embaixo da palha, ainda a tempo de ouvirem suas últimas palavras: “Eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo”.

Depois de morto, o artista da fome é enterrado junto com a palha de sua jaula. Em seu lugar colocaram uma jovem pantera, que agradava muito a patota por seu apetite felino quase insaciável. O espetáculo da fome deu lugar ao espetáculo de uma bem alimentada pantera.

A metáfora do conto de Kafka remete à situação vivida pelo padre Júlio Lancellotti. No entanto, ao contrário do artista da fome, os moradores de rua da cidade de São Paulo não fazem jejum por capricho artístico. A fome que assola a população de rua é fruto da desigualdade social e dos problemas estruturais enraizados no antagonismo de classes presente desde os tempos coloniais. Ao contrário dos espectadores do conto de Kafka, aqueles que perseguem o padre Júlio ainda não querem trocar os esfomeados pela pantera apetitiva. A espetacularização da pobreza e da fome é a munição do canhão da hipocrisia social, sobretudo de uma classe média, fetichizada por ideais ultraconservadores, neoliberais e devotos de uma meritocracia fantasiosa.

Padre Júlio, no entanto, segue firme. Seja ou não pelos seus votos presbiterais, assim como Jesus Cristo, “in persona Christi”, Júlio Lancellotti não provê o espetáculo da fome, mas o combate. Ele luta contra a pobreza, contra a miséria, contra a homofobia, contra a exploração dos menos favorecidos. E eles, os que lhe perseguem? Bem, eles lutam contra ele…

 

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