As meninas de Ibiúna – Parte III

João Teixeira

Fonte: documentosrevelados.com.br

O conservadorismo reacionário das donas-de-casa, como denominava-se a maioria das mulheres em meados do século 20, garantiu o éxito das “campanhas de pánico” que precederam o golpe civil-militar (1964/85).
Os golpistas ganharam as mentes, antes de se imporem pelas armas.
Em 1964, a vitória foi dos detentores dos órgãos manipuladores de notícias – precursores dos famigerados “gabinetes de ódio” da atualidade.
Chamavam-se Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES, cujas sementes haviam sido plantadas no final do governo JK, nos anos 50.
O IBAD era o braço político e ideológico das elites; o IPES era o órgão técnico que fazia pesquisas e estatísticas coletando informes e dados para a produção de filmes publicitários, panfletos, cartazes, livros e toda forma de propaganda contra o projeto nacional-reformista do presidente João Goulart e setores aliados.
Em tempos mecanográficos, de telexes e máquinas de escrever, o complexo IPES/IBAD mapeava a sociedade, como os algoritmos fazem hoje no mundo digital.
O financiamento vinha do capital externo e interno, cerca de 300 empresas de grande e pequeno porte, mineradoras, transportadoras, editoras e indústrias farmacêuticas e alimentícias, principalmente, além dos bancos e seguradoras.
Segundo Dreyfus, o complexo IPES/IBAD reunia políticos, empresários, religiosos, jornalistas, publicitários, professores, escritores e grupos de estudantes, trabalhadores e donas-de-casas.
Estudantes de 16 a 27 anos, das classes média e alta, antireformas, sob a batuta de Aristóteles Drummond, ajudado pela CIA americana.
A “Rede da Democracia” opunha-se á “Cadeia da Legalidade”, de Brizola. Haviam depósitos de armas, uniformes e explosivos espalhados em igrejas e fazendas.
É preciso compreender que o golpe de 1964 não ocorreu do dia para a noite, foi um longo processo em que, de 1945 a 64, quando derrubaram Goulart, a cúpula militar conservadora -aliada aos EUA e ao capital estrangeiro – promoveu sete tentativas de golpe militar no Brasil.
Só tiveram êxito quando a sociedade foi bombardeada pela furiosa campanha anticomunista, baseada em três palavras-chaves: democracia, subversão e livre iniciativa.
As mulheres – sustentáculo do poder da Igreja católica- foram decisivas neste processo. As senhoras cristãs fundaram entidades filantrópicas, assistencialistas, e colaboravam com dinheiro, joias e trabalho voluntário na luta contra o comunismo ateu que ameaçava a família e os valores cristãos.
A indústria do anticonunismo – ontem como hoje – promovia campanhas contra a “ameaça vermelha”, angariava polpudas contribuições financeiras no meio empresarial e industriais tomados pelo pânico e “profissionais que temiam o futuro”.
Altamente receptivas ao populismo propagandístico das elites, as donas-de-casa tomaram as ruas e levantaram bandeiras em defesa da “moral e dos bons costumes; da família brasileira; do direito á propriedade privada e a livre iniciativa empresarial e o capital estrangeiro na economia”.
Orientadas pelo clero conservador, a Marcha de Deus, com a Família, pela Liberdade juntou milhares de pessoas orando pelas ruas do centro paulistano, no dia 19 de março de 1964.
Outra marcha igual estava prevista para ocorrer no Rio, a 2 de abril, mas o golpe veio antes.
Em “Uma vida de lutas” (Ed. Perseu Abramo, 2012), Renée de Carvalho, mulher de Apolônio de Carvalho, casal comunista revolucionário da Resistência Francesa contra o nazismo, escreveu: “o papel da mulher foi algo tenebroso, com velas colocadas em cima das janelas e todo aquele cenário de apoio ao golpe”.
Em Belo Horizonte, Leonel Brizola foi escorracado como o “anti-Cristo”, pelas senhoras católicas.
As águas rolaram e o movimento político cresceu. E, se no início dos anos 60 a manipulação informativa do anticonunismo desencadeada pelas “campanhas de pánico” que exorcizava as massas do demoníaco materialismo ateu da “subversão comunista”, as meninas e os meninos presos no congresso ilegal da UNE, em 12 de outubro de 1968, foi uma revanche histórica.
O protagonismo revolucionário feminino em 68, principalmente, espantou as autoridades e merece análise profunda. Foi uma verdadeira “volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar” – como esse versão de uma canção de Vandré.
A elite paulistana andava preocupada com o esquerdismo que reinava entre os estudantes da USP, a Filosofia, ciências e letras da Rua Maria Antônia, o espaço mágico de faculdades, bares, teatros, arte e política e efervescentes debates.
As “republicas” estudantis, habitadas fraternalmente por jovens estudantes chegados do interior do estado, proliferavam nas imediações.
As meninas e os meninos de Ibiúna frequentavam bares com nomes sugestivos, como Balcão de Pedra, Óbvio, Sem Nome, o Bar do Zé, o único que sobrevive até hoje. Os mackenzistas preferiam locais com nomes americanos, como Mcfill. Eram divididos em gostos, estilos de vida, preferências e ideologias.
Helenira Rezende, uma destacada menina presa em Ibiúna, havia sido presa por ter pichado o muro do Mackenzie: “abaixo as leis da ditadura”. Anexo auto de qualificação e interrogatório de Helenira no Dops.
A mesma perseguição que sofreram Ranúsia Rodrigues, Maria Augusta Thomaz, Iara Iavelberg, a húngara Katarina Kolkay e dezenas de outros nomes que figuram em htpps://documentosrevelados.com.br
Um monumento na praça da matriz de Ibiúna conta a história de alguns estudantes presos. Ibiúna quebrou a espinha dorsal do movimento estudantil e permitiu as forças de segurança ficar centenas de estudantes, mais tarde identificados e perseguidos como membros de diversas organizações da esquerda armada.
As mulheres alienadas e manipuladas pelo poder em 1964, graças ao estudo, mostravam-se engajadas em 1968 contra a opressão.
“O que seria das lutas de hoje sem o legado de quem se opôs á ditadura?” – indaga Maria Lúcia.
E de quantas Marielles precisaremos para forjar nosso futuro? “O link das lutas passadas com as futuras”, arremata Adilson Lucena.

Palavras-chaves: congresso de Ibiúna; movimento estudantil de 1968; mulheres na luta armada.

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