A culpa nunca é da vítima – a cultura do estupro e as possibilidades de transformação social

Por Aline Cardoso Lorenzetti, mulher, feminista, membro do Fórum Permanente de Enfrentamento da Violência Contra as Mulheres de Ourinhos, educadora, professora de Sociologia e Filosofia.

 

Impossível não nos revoltarmos com a fala de professor de direito penal que, durante aula, atribuiu culpa às mulheres vítimas de violência doméstica e estupro, utilizando-as comicamente como exemplos da ideia de que os comportamentos das mulheres podem interferir nas práticas criminosas, ou seja, as mulheres que utilizam roupas curtas ou resistem aos seus abusadores influenciam no ato cometido contra elas mesmas. A revolta aumenta quando nos deparamos com a nota de esclarecimento da instituição de ensino se isentando de posicionamento justificando a fala do professor como “liberdade de cátedra”.

O fato veio à tona pelas redes sociais e chocou por ocorrer em instituição de ensino superior privada, mas infelizmente é realidade recorrente em todo país. Tanto o discurso do docente quanto a postura da faculdade estão na base da desigualdade de gênero que se se banaliza e se reproduz em nossa sociedade, justificados por instituições que deveriam promover a equidade, a transparência, a justiça e a ética, mas, ao se comportarem dessa maneira, servem como apoiadores dessa atuação absurda e desumana, configurando a chamada cultura do estupro.

O termo cultura – para as Ciências Sociais – é entendido enquanto costumes práticas, saberes e comportamentos que conferem identidade a um grupo/sociedade, sendo reproduzida de geração a geração, não como uma característica biológica, mas sim através do convívio diário nos processos de socialização pelos quais passam as pessoas ao longo da vida. Nesse sentido, a Cultura do Estupro – termo desenvolvido na década de 1970 pelas feministas da chamada Segunda Onda – refere-se aos costumes, comportamentos, valores e ambientes nos quais a prática do estupro é dominante e a desigualdade e as violências contra a mulher (física, psicológica, verbal, moral, sexual, institucional) são tidas como naturais.

A construção desses comportamentos é um processo que vai sendo enraizado em nós desde criança, quando nos ensinam que a menina deve ser delicada, perfeita, cuidadora, atenciosa e ganha bonecas, pois assim já nos ensinam a cuidar da casa e dos filhos, e os meninos, fortes, ousados, competitivos e ganham carrinhos, jogos de luta, elaborando já, a ideia de sempre estarem em posição de poder superior às meninas. Outro exemplo é quando na adolescência as meninas não ‘devem’ manifestar seus interesses sexuais, pois ficarão faladas, enquanto os meninos podem realizar as escolhas que querem, pois acrescenta número para seu currículo.

Nota-se que os papéis sociais atribuídos às mulheres têm sempre ligação e se reduzem ao corpo, que desde cedo é sexualizado e objetificado, como um instrumento para servir à satisfação masculina, como nos comerciais de cervejas, de carro, entre outros produtos. Assim, as posições ocupadas pelas mulheres vão se consolidando e constatamos as desigualdades instaladas em todas as esferas da existência feminina.

Desde as piadas contadas onde a mulher nunca é boa o bastante; na família onde a carga de trabalho com cuidados com a casa e filhos é quatro vezes maior que a do homem; na esfera profissional onde os cargos de chefia são em menor número para nós e o salário é menor.

Está aí! Um ambiente que intersecciona desigualdades configurando-se numa sociedade patriarcal, racista e capitalista que inferioriza e  torna objeto o feminino, não nos reconhecendo como sujeito de direitos, moldando uma sociedade extremamente violenta, com altíssimos índices de feminicídios, estupros e abusos que se consolidam, legitimados pelas próprias instituições responsáveis pelo amparo dessas mulheres.

Outro fator que contribui para a Cultura do Estupro é a ausência de posicionamento e de tomada de medidas legais, como o caso da faculdade que emprega o professor acima citado, com capital cultural suficiente para coloca-lo em situação de poder devido ao conhecimento e posição de cátedra que ocupa, fazendo piada de situações de abuso, naturalizando mais uma vez situações de abuso.

Assim, o pensamento de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ou “mas também, olha a roupa que ela estava!”, individualiza, mantém a violência de gênero no âmbito doméstico, tirando-a do radar público, como constatou o Fórum Permanente de Enfrentamento da Violência Contra as Mulheres de Ourinhos ao realizar levantamento de dados para sistematizar o funcionamento dos serviços de atendimento dessas mulheres em situação de vulnerabilidade e como eles se articulam.

A falta de dados e transparência nos mesmos só explicita a dificuldade de interação entre esses vários setores para solucionarem os problemas vivenciados por essas mulheres. Importante ressaltar a responsabilidade de atuação e importância desses equipamentos, como a Delegacia da Mulher, Disque 180, entre outros Serviços de Saúde e da Assistência Social, que de fato deveriam funcionar de forma conectada para que os direitos sejam realmente garantidos e não funcionarem como mais uma faceta de violação de integridade.

Acontece que quando uma mulher é violentada ela passa por uma série de sofrimentos que não se resumem ao ato. Ela sofre, primeiramente com a situação em si, em seguida passa a ser silenciada pelo agressor e sofre com o medo da represália e quando esse mesmo agressor não consegue silenciá-la, começa a culpabilizá-la, fazendo-a se sentir responsável pelo ocorrido. É esse dominó de violências que deve ser imediatamente interrompido quando a vítima procura um serviço de atendimento mas, muitas vezes ela revive ali todo o ciclo. É a chamada violência institucional.

Essa forma de violência, legitima essa cultura do estupro, repassando essa mensagem através do sofrimento das mulheres, pois quando isso ocorre, as mulheres vítimas de abuso, são forçadas a contar , em depoimentos, a história inúmeras vezes, sendo discriminadas por qualquer motivo, como serem negras, pobres, idosas, adolescentes, transexuais ou estrangeiras; e questionadas sobre possíveis motivos que possam ter provocado ou justificado a situação de violência, desde o horário, roupas que vestiam, detalhes de sua vida íntima e sexual, sentindo-se mais julgadas do que representadas e ainda por cima, não tem a garantia da punição do agressor e da segurança necessária.

Nesse contexto, a sensação é de estar sendo violentada, revivendo situações cotidianas de abusos que enfrentamos desde a infância, como o assédio em todos os espaços, a tentativa de sermos silenciadas, a tentativa de falarem por nós, de nos colocarem como ‘loucas’, ‘exageradas’, ‘estressadas’, de tentarem ditar nossa roupa, aparência, sexualidade, maternidade, trabalho, salário até a dor física da agressão que sempre ‘vai passar porque foi amor’ ou que deve ficar ‘entre as quatro paredes’.

Mas, retomando uma das premissas da cultura se caracterizar enquanto construção social e não algo inato, ela pode ser desconstruída e transformada. É esse sentido de inconformidade que tem unido mulheres desde o início do movimento feminista que hoje se apresenta com formas diversas (coletivos, projetos, fóruns), como o recém criado, Coletivo Maria Carolina de Jesus, da cidade, e acompanhando as vivências de cada grupo, dialogando com as questões de raça e classe, tem sido a resistência que propõe transformar comportamentos, lutando para que as mulheres se identifiquem como sujeito de direitos e que esses direitos, através das políticas públicas, sejam de fato, efetivos.

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