Entrevista especial com o professor da UENP Maurício de Aquino

Nesta semana, o Contratempo entrevistou o professor da UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná) Maurício de Aquino,  que nos falou sobre sua trajetória educacional, religião e política, entre outros assuntos. Aquino é licenciado em História pela UENP, fez doutorado em História pela Unesp de Assis e fez Filosofia na USC (Universidade do Sagrado Coração). Confira abaixo a entrevista:

Contratempo:  Fale-nos um pouco sobre a sua trajetória educacional

Maurício de Aquino: Nasci em Ourinhos no ano de 1978. Cursei o primeiro e o segundo graus (atualmente ensino fundamental e médio) em escolas públicas. Nos anos de 1997 e 1998 estudei Filosofia pela Universidade do Sagrado Coração quando era estudante seminarista católico no Seminário São Pio X e no Seminário Sagrado Coração de Jesus em Marília-SP. Entre 1999 e 2002 cursei a licenciatura em História na então Fafija, atual UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná), em Jacarezinho-PR. Ainda na UENP cursei dois anos de pós-graduação lato sensu (especialização) em “História e Historiografia: Sociedade e Cultura” na conclusão da qual apresentei uma monografia sobre as relações entre ensino de história e os usos pedagógicos do cinema. Depois prossegui com os estudos históricos realizando o mestrado e o doutorado junto ao programa de pós-graduação stricto sensu em “História e Sociedade” da UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho), na cidade de Assis-SP. Concluí o mestrado em 2007 e o doutorado em 2012. No mestrado abordei o tema da formação histórico-social de devoções católicas no Brasil a partir de um caso ourinhense: o culto a Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado. No doutorado analisei as relações entre instituições políticas e religiosas no Brasil, no caso entre o Estado e a Igreja Católica na primeira república brasileira, particularmente entre 1890 e 1923, com ênfase no processo de criação de dioceses no território brasileiro, especialmente no estado de São Paulo, a partir de uma variedade de documentos históricos consultados em arquivos civis e eclesiásticos do Brasil e no Arquivo Secreto Vaticano. Além dessa trajetória acadêmica, a minha experiência no magistério contribuiu decisivamente para a minha formação intelectual e aprimoramento profissional como docente pesquisador. Fui professor de história e filosofia em escolas particulares e públicas do ensino fundamental e médio entre os anos de 2002 e 2010. No ano de 2006 comecei a ministrar cursos e aulas no ensino superior e desde 2007 leciono no curso de licenciatura em História da UENP. Em julho de 2016 passei a integrar também o corpo docente do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) em Ciência Jurídica da UENP procurando contribuir de alguma forma nas discussões e análises, por exemplo, sobre cidadania, laicidade e liberdade religiosa desde a perspectiva historiográfica.  Atualmente desenvolvo e oriento trabalhos de ensino, pesquisa e extensão principalmente sobre temas de história das religiões, de história social e política do direito e de educação e ética na modernidade.

Contratempo: Qual é a função da religião na sociedade?

Maurício de Aquino: A resposta a essa pergunta exigiria, historicamente, uma longa e contextualizada exposição porque ao longo do tempo as sociedades atribuíram diferentes sentidos e propósitos ao que hoje chamamos “religião”. Chama a atenção, todavia, o fato da constante presença de símbolos e doutrinas religiosas durante toda a história da humanidade. Essa recorrência e certa regularidade de ritos e símbolos religiosos em diversas culturas geraram teorias que apresentam a religião como uma estrutura fundante e fundamental das sociedades humanas. É um tema polêmico que resultou em intermináveis debates e em uma gigantesca bibliografia. Entretanto, seguindo essa teoria, historiadores de competência internacionalmente reconhecida, como o francês Jean Delumeau e o romeno Mircea Eliade, defenderam em suas análises que o ‘sentido do sagrado e da transcendência’ pode ser considerado o marco definidor da humanidade em relação ao mundo natural, bem como o fator desencadeador de cultura e vida social. Mircea Eliade utilizou a expressão ‘homo religiosus’ para destacar essa dimensão sagrada da existência no mundo constituída a partir de doutrinas, rituais, símbolos, linguagens e experiências religiosas relacionadas às mais diferentes situações da existência humana. Mas, qual é a função da religião na sociedade? Não há uma função preestabelecida para a religião na sociedade. O lugar social da religião é historicamente construído de acordo com específicas temporalidades, espacialidades, relações, situações e condições. Em poucas palavras, essas especificidades indicam que o lugar social da religião ou as expectativas sociais a respeito dela são influenciados pela relação que cada pessoa ou grupo social mantém com o sagrado e o transcendente: ora de aproximação e reverência, ora de distanciamento e rejeição. Apontam para uma rede simbólica que envolve tradição, mística, afetos, desejos, sonhos, esperanças, enfim, íntimas e profundas convicções que lançam o humano para além de si. Desses posicionamentos perante o sagrado podem surgir tensões individuais e sociais. Ademais, urge pensar também a realidade contemporânea de pessoas que se consideram “sem religião” (ou sem uma igreja), mas não sem alguma fé. É um fenômeno que pode ser chamado de desinstitucionalização da fé, em outras palavras, as pessoas mantém uma fé eclética, não subordinada ou vinculada a alguma instituição religiosa, a alguma igreja. Enfim, ao longo da história, as ideias e instituições religiosas têm sido utilizadas por homens e mulheres para as mais diferentes finalidades, muitas delas em clara oposição aos próprios princípios religiosos confessados e isso porque a realidade social é complexa e contraditória e as ideias e instituições religiosas estão nela inscrita, ainda que não se limitem a ela.

Contratempo: Percebemos no Brasil uma diminuição do catolicismo, e o aumento de igrejas neopentecostais, a que se deve esta mudança?

Maurício de Aquino: Gostaria de iniciar a resposta apresentando os dados do último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), coletados em 2010 e divulgados em 2012, sobre as religiões no Brasil. Os percentuais gerais junto à população brasileira são os seguintes: católicos, 64,6%; protestantes/pentecostais/cristãos de diversas igrejas, 22, 2%; sem religião, 08%; espiritismo, 02%; outras religiões, 3,2%. Primeiramente, faz-se necessário tratar da chamada “tese do declínio do catolicismo no Brasil” difundida pela sociologia religiosa brasileira principalmente nos anos 1990 e que se fortaleceu no ano 2000 quando os dados do IBGE registraram então que de 83,3%, em 1990, o percentual de católicos diminuíra para 73,9%, em 2000. Já o percentual de protestantes/pentecostais/diversas igrejas cristãs passara de 9,0%, em 1990, para 15,6%, em 2000. Uma queda de quase 10% do percentual católico com o aumento em 6,6% do percentual protestante/pentecostal/diversas igrejas cristãs. Esses dados percentuais quando utilizados de modo rigoroso e contextualizado expuseram os sinais demográficos de mudança social e religiosa brasileira. Entretanto, como escreveu o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, a tendência de igrejas tradicionais é a perda percentual de fieis em face da modernização e de reorganização institucional diante desse novo cenário. Ele também considerou que é preciso observar os números desde outro ângulo, não apenas em termos percentuais. Por esse ângulo, os dados do censo de 2010 revelaram que dos 200 milhões de brasileiros, 123 milhões são católicos. É de longe a religião majoritária e faz do Brasil o maior país católico do mundo. Em 2010, muitos esperavam índices ainda mais intensos de queda percentual do catolicismo e ascensão percentual de protestantes, pentecostais, neopentecostais e de demais igrejas cristãs.  Os resultados vieram e o padrão se manteve, mas de modo bem mais tímido do que esperavam os militantes propagadores do declínio do catolicismo. Mas, o que surpreendeu os analistas no último censo foi o grupo dos “sem religião” que passou do percentual de 4,7%, em 1991, para 8%, em 2010. Chamou a atenção porque se trata de um grupo que não se considera ateu e nem religioso vinculado a uma igreja. Como foi dito, trata-se de um grupo constituído por pessoas que não têm filiação institucional, são sem igrejas (religião), mas não sem fé. Outro índice chama a atenção: o percentual de 3,2% relativo às outras religiões – islamismo, judaísmo, budismo, candomblé etc. Fazendo menção uma vez mais às interpretações de Antônio Flávio Pierucci, esse também seria o índice de nosso pluralismo religioso: 3,2%. Para Pierucci, esse percentual indica que o campo religioso brasileiro é mais bem caracterizado pela noção de diversidade cristã do que pela noção de pluralismo religioso.

Contratempo: Há um considerável número de pessoas que acreditam na existência de seres de outros planetas (plêiades), anjos, energias positivas/negativas e cidades intraterrenas como Agartha, geralmente temas ligados ao esoterismo, isso configura um novo tipo de religião? Como interpreta esses dados? Esta seria uma forma contemporânea de lidar com o sagrado?

Maurício de Aquino: Desde pelo menos os anos 1960, com os movimentos de contracultura, desenvolveram-se diversas religiosidades, espiritualidades, místicas, rituais, filosofias naturais e afins que ofereciam às pessoas alternativas espirituais em relação às instituições religiosas tradicionais. Em geral parece ocorrer uma espécie de ‘reciclagem’, de ressignificação, de reinvenção de crenças, símbolos e rituais antigos, como nos casos da Wicca, Santo Daime ou de Agharta (essa espécie de Atlântida esotérica eclipsada no interior da Terra). Há também a ufologia esotérica oriunda de uma curiosa articulação entre elementos esotéricos e postulados científicos que resulta na crença da salvação da Terra pela superinteligência extraterrena. Aliás, em parte, esse foi o mote do filme “Indiana Jones e o reino da caveira de cristal” (EUA, 2008). Há ainda a Cientologia, ou Igreja da Cientologia, que envolve postulados científicos, misticismo e terapêutica. Um de seus mais antigos e ilustres membros é o ator Tom Cruise. Enfim, para usar as palavras da sociologia de Zygmunt Bauman e observando o que disse até aqui, pode-se considerar que a realidade social contemporânea enseja práticas de “religiosidade líquida”, de fluidez nos tempos e nos modos de filiação religiosa. Enseja também uma espécie de teodiversidade (variedade de deuses e religiosidades). Enfim, em termos técnicos, para a antropologia e a sociologia, são os chamados Novos Movimentos Religiosos. São, então, movimentos religiosos surgidos na segunda metade do século XX com a intenção de oferecer outras (ou novas) respostas e orientações à existência humana. Retomam ou reinventam místicas milenares, mas orientam-nas para uma forma e um propósito prático de resolução dos problemas atuais.

Contratempo: Livros de autoajuda abundam no mercado, como enxerga este cenário?

Maurício de Aquino: A literatura dita de autoajuda se desenvolveu, de certo modo, a partir de uma técnica de prática terapêutica (da psicanálise à filosofia clínica) chamada de biblioterapia. Ela consiste na indicação de livros específicos para determinada pessoa cujos conteúdos têm condição de esclarecer situações e orientar atitudes. É uma prática antiga e, de certo modo, vinculada a todo ato de leitura. Ao lermos buscamos e recebemos ajuda. Mas, como linha editorial e segmento de mercado, a literatura de autoajuda é muito diversa em qualidade e profundidade, tal como são diversos os propósitos de seus leitores ao escolherem os seus autores e livros. Para mim, o ritmo contínuo de transformações nas relações cotidianas, por conta de novas formas de organização de rotinas e das implicações dos usos da tecnologia de comunicação, e também pelo individualismo social e pela variedade de decisões a serem tomadas como decorrência do questionamento ou da inadequação de modelos de conduta de outrora, geram sensações e situações perturbadoras de confusão, perplexidade e hesitação. Não estou feliz com a minha vida, o que fazer? Quem eu sou? Quem eu quero ser? Há muitos problemas no trabalho e na família (sempre há), como resolvê-los? Essas e outras questões afligem as pessoas. Até bem pouco tempo vivíamos em um contexto social no qual as respostas para essas perguntas estavam dadas pelos modelos do passado – distante ou recente. Hoje os modelos do passado são considerados (e, às vezes, o são de fato) inadequados, ineficazes para responder às questões existenciais lançadas pelo presente. Além disso, somos estimulados a pensar por nós mesmos, a assumirmos atitudes de cidadania, a eleger os representantes políticos etc. Assim, esse contexto faz com que as pessoas busquem por si mesmas (autoajuda), em livros escritos com esse propósito, as opções práticas de respostas e de orientação para a vida em nosso tempo. Essa busca de resposta e de orientação também está presente nos fenômenos da religiosidade líquida, teodiversidade e novos movimentos religiosos já discutidos, mas também nos processos de refiliação religiosa e renovação institucional como se pode observar no interior da Igreja Católica Apostólica Romana com o movimento da Renovação Carismática Católica (RCC) e das ações e pronunciamentos do papa Francisco. Está presente também na procura por cursos ou livros de ciências humanas e sociais, principalmente de filosofia, história e sociologia. O sucesso de professores-autores-palestrantes, como o historiador Leandro Karnal e o filósofo Felipe Pondé, deve-se também a essa necessidade humana de conhecimento que leve à compreensão da realidade e à orientação para a tomada de decisões na vida.

Contratempo:  É possível misturar política e religião na atual realidade política brasileira?

Maurício de Aquino:  Sou constantemente interrogado sobre essa relação entre religião e política pelos meus alunos na universidade. Digo a eles que a história política mostra que não houve e não há separação entre religião e política no Brasil, ou em qualquer outro país. Isso porque todo ser humano em sociedade é político, bem como todo agrupamento humano é político. As comunidades e instituições religiosas não são exceção, elas são políticas. Elas têm concepções sobre como as pessoas devem se comportar em sociedade, como a sociedade deve estar organizada, qual é o melhor regime político-administrativo etc. Mas, é preciso observar também que se as instituições religiosas são políticas, isso não quer dizer que elas sejam necessariamente partidárias no sentido de estarem homogeneamente alinhadas ou subordinadas a um partido específico. O político e o partidário nem sempre coincidem. Por outro lado, do ponto de vista da cidadania e da democracia constitucional brasileira, urge considerar que o problema não está na apresentação pública de ideias e propostas embasadas em princípios religiosos nos parlamentos, afinal, elas são legítimas na discussão republicana como quaisquer outras ideias provenientes da convicção de seus cidadãos, mas o problema está na subordinação do debate democrático a doutrinas religiosas que ferem os princípios constitucionais. Infelizmente, vê-se ainda outra situação, ainda mais tensa em termos morais: a instrumentalização de doutrinas religiosas e do nome de Deus para atender a interesses de coalizões partidárias, traindo assim, em muitos casos, a Constituição Federal e os próprios princípios religiosos que dizem confessar. Aliás, vale explicitar aqui que o princípio da laicidade do Estado, da esfera pública e coletiva, enseja o ambiente social adequado para a manifestação de crenças e visões de mundo divergentes, garantindo a liberdade de consciência, seja ela religiosa ou não. Ela permite então que as ideias religiosas estejam presentes nas discussões públicas, nos debates políticos. Mas, nessas discussões e debates todos os argumentos em questão, religiosos ou não, devem ser avaliados a partir dos princípios e garantias dispostos em nossa Constituição Federal que em 2018 completará 30 anos de história.

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